48
Portugal | 2009 | P&b | 93’
Realizador: Susana Sousa Dias

Sinopse
O que pode uma fotografia de um rosto revelar sobre um sistema político? O que pode uma foto- grafia de um rosto tirada há mais de 35 anos dizer sobre a nossa actualidade? Partindo de um núcleo de fotografias de cadastro de ex-prisioneiros políticos da ditadura portuguesa (1926-1974), 48 procura mostrar os mecanismos através dos quais um sistema autoritário se tentou auto-perpetuar.

 

“48”

Fui colega da Susana Sousa Dias na Escola Supe- rior de Teatro e Cinema, onde ambos frequentámos e concluímos a escola de Cinema entre 1981 e 1984, ela na área de Imagem, eu na de Monta- gem. Depois, ela fez o curso de Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes e, que eu saiba, esteve afastada da actividade cinematográfica, exceptuando colaborações em projectos do seu pai, o realizador António de Macedo, até 1996; quando realizou o seu primeiro filme, “Uma Época de Ouro“: 3o episódio da série documental “História do Cinema Português“, produzida pela Acetato, de Pedro Éfe, e que abordava o período entre 1933 e 1945, no cinema português.

Terá sido com esse filme que Susana descobriu as possibilidades e fascínio que é trabalhar com materiais de arquivo e, desde então, essa tornou-se numa das matérias fulcrais e constantes de toda a sua obra subsequente.

Apesar da sua filmografia ainda ser espaçada e curta, Susana Sousa Dias, vem depurando a cada filme a sua obra, afirmando-se, com o seu olhar, como uma importante e muito interessante reali- zadora, que se debruça sobre a história recente de Portugal, dando voz a pessoas comuns (mas que na verdade não são assim tão comuns), que, de outro modo, muito provavelmente, cairiam no esqueci- mento e na indiferença.

Assim, após “Processo-Crime 141/53 – Enfermeiras no Estado Novo“ (2000) e “Natureza Morta“ (2005), vemos agora “48“ – também, como os anteriores, abordando aspectos do Estado Novo enquanto regime que dominou Portugal entre 1926 e 1974, durante quarenta e oito anos: daí este último título.

“48”, numa leitura mais básica e primária, é um filme sobre presos políticos durante o regime de Salazar e de Marcelo Caetano. São eles o tema e as personagens; digamos, o assunto, o conteúdo. Formalmente, o filme é uma sucessão de fotogra- fias de identificação/cadastro e pouco mais (será?).

É nesta aparente simplicidade que se descobre um belo e importante filme, que pretende resistir ao apagamento e branqueamento histórico e dar uma outra luz sobre um período tão obscuro e tenebroso da nossa história recente, dando voz aos testemunhos vividos na primeira pessoa, mas desfasados temporalmente entre as fotografias filmadas, tiradas na época, e o registo sonoro desses testemunhos, captados actualmente. Entre as imagens (as fotografias e excerto de filme) da Imagem do próprio filme e os seus correspondentes sons, existem grandes elipses temporais, onde  se inscreve a memória de cada uma daquelas pessoas retratadas, e o seu testemunho hoje, sobre o tempo em que foram fotografadas. Ouvimos apenas o que nos dizem dessas fotografias e do tempo delas, esse tempo em que estiveram presas e foram bárbara e estupidamente torturadas e humilhadas. Para além de percebermos que são opositores do regime – e julgo que praticamente todos eram afectos ou militantes do Partido Comunista Português – poucas informações temos sobre o que está para trás do tempo daquelas fotografias, como também muito pouco ficaremos a saber sobre o que se passou com cada uma delas desde esses tempos da prisão, e aquilo por que passaram, uma vez que o seu testemunho oral, dado na actualidade, se reporta especificamente ao tempo daquelas fotografias.

Por isso, e associado ao modo como foi filmado e montado, com milimétricos movimentos de câmara, depois trabalhados em ralentis, e recorrendo à utilização de fundidos, fusões e sobrimpressões, deixando inúmeras vezes a imagem num aparente vazio/negrume povoado de subtis sonoridades, correspondentes aos ambientes onde se inscrevem as vozes, fazem para mim o filme ser tão autêntico, inquietante e em simultâneo tão elegante, num excelente registo sobre a Memória e como o Cinema a pode transmitir.

A minha escolha do “48” para ser exibido nestes Encontros Cinematográficos, fazendo uma correspondência com o meu filme “Ruínas”, para além do quanto gosto do filme da Susana por ele próprio, passa por encontrar inúmeras e variadas pontes entre os dois.

Ao nível formal, ambos estão construídos de uma maneira muito depurada e minimalista, aparentando uma simplicidade de processos que julgo permitirem a cada espectador ver o seu próprio filme, e abrindo-os para diferentes níveis de leitura. Um e outro filmes trabalham, laboriosamente, minúcias não evidentes na imagem, no som e na montagem. Em “48” vêem-se, quase exclusivamente, rostos de pessoas fixados em minúsculas fotografias de cadastro e identificação; em “Ruínas” quase exclusivamente locais e espaços inabitados. Em “48” sucedem-se vozes individuais e objectivas; em “Ruínas”, outras vozes, mais corais e abstractas. Em ambos os filmes, as vozes, envolvidas no restante som, de ambientes, ruídos, música, criam, depois, com a imagem, uma conjugação fantasmática para despoletar a memória / memórias, de pessoas, gentes, pedaços da história de um povo e de um país.

São ambos filmes de resistência contra o esquecimento e o apagamento; filmes da memória, e pela liberdade.

Manuel Mozos