ALUMBRAMIENTO
Espanha / Portugal | 2001/2
Realização: Victor Erice

“Alumbramiento” é uma curta-metragem feita para o filme “Ten Minutes Older: The Trumpet” (2002), onde figura com o título “Lifeline”.

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ALUMBRAMIENTO
(em Ten Minutes Older-The Trumpet)(2001/2)

Apesar de durar forçosamente apenas 10 minutos – o filme colectivo para o qual Victor Erice foi convidado a participar intitula-se Ten Minutes Older -, esta curta-metragem (infelizmente pouco vista) daria muito que falar, pois traz várias novidades na breve mas densíssima filmografia de Victor Erice.

Pode-se evocar a figura de Alfred Hitchcok (pelo suspense, uma primícia no cinema “ericiano”; pela fragmentação; pelo preto e branco usado, como em Psycho, para não fazer do sangue um espectáculo e do vermelho uma mancha que faça desviar o olhar) e, por sua vez, a de Robert Bresson (o que não é estranho, pois têm em comum, entre outras coisas, o facto de serem dois dos cineastas que mais evidentemente criaram uma “escrita” cinematográfica e que mais se baseiam na montagem, e que, portanto, mais devem ao cinema mudo e, provavelmente por isso mesmo, maior atenção e função atribuem ao som). Assim, temos neste caso uma passageira “suspensão” do sentido que produz a fragmentação, e que nos faz questionar durante uns instantes – o que é isto, o que é que se passa, onde estamos? -, além da rejeição da cor como algo que pode distrair do essencial.

Mas não se deve esquecer o magistério de Griffith, que é porventura, no final de contas diria eu, uma influência permanente e essencial em Erice, e o nexo de união entre Alumbramiento e a frustrada La promesa de Shanghai, além de ser um antecedente do para mim pré-bressoniano Josef von Sternberg, outra das figuras tutelares do verdadeiro nascimento de Erice como cineasta, em El espíritu de la colmena(1973), e também uma das raízes do frustrado projecto baseado no romance de Juan Marsé.

Simbolicamente, um “alumbramiento” (curto em todos os sentidos, excepto no seu alcance) parece uma forma evidente de compensar e superar um aborto indesejado e forçado (de algo longo e muito querido, de prolongadíssima e laboriosa gestação). Mas, depois de ver Alumbramiento dez vezes, não me restam dúvidas, e não me afastarei da seguinte convicção nem que o próprio Victor Erice me desminta: de facto, é a solução do dilema colocado por El sol del membrillo – chegados aqui que fazer?, por onde seguir?, é um caminho que se pode prolongar ou já não há continuação?, ficção ou não ficção? – e penso que La promessa, se tivesse sido feito, não teria resolvido, porque significava partir de outro sítio e ir noutra direcção. Mas graças a essa longa etapa intermédia de elaboração (e inclusive da sua frustração e do trauma que provocou) de La promessa de Shanghai, penso que Erice – suponho que naturalmente, sem provocá-lo conscientemente – conseguiu prolongar El sol del membrillo e ir inclusive um pouco mais além. De tal modo, suspeito, que se alguém puder ver os seus filmes dentro de cem anos, sem saber nada dos “interstícios”, fazendo elipses sobre os anos e os labores, encontrará uma continuidade totalmente lógica, um passo e o passo imediatamente seguinte, entre os dois filmes, separados, como quase sempre, por um hiato com cerca de dez anos.

E é curioso que seja a presença oculta mas patente do magistério griffithiano o que para mim confirma tanto a continuidade entre os dois filmes, à primeira vista tão distintos como El sol del membrillo e Alumbramiento (por outro lado, que faz o sol senão, em mais do que um sentido, iluminar? E que faz, ou deveria fazer, pois pode, o cin- ema, ainda que costume fazer exactamente o contrário?), e o nexo quase invisível entre La promesa de Shanghai e Alumbramiento, que converte esse projecto (com a sua não realização incluída) na “prova necessária” para dar mais um passo adiante, depois de ter chegado, como quem diz, ao limite de vislumbrar um ponto a que ainda não chegara fisicamente, mas que Erice via ou intuía sem poder pôr os pés nesse lugar. Não sei se terá algo a ver com essa crença, da qual vejo rastos bem patentes, sobretudo em Rossellini (Stromboli, Europa ’51…) e quiçá menos em Renoir (embora também), que alguns possivelmente classificarão de (ou desclassificarão como) “implantações” de uma suposta moral judaico-cristã, de que as coisas há que merecê-las, ou o que mais vale a pena custa a conseguir, o que tem um lado desalentador de ver o caminho como uma encosta que re- quer esforço a subir, mas também o lado “consolador” de chegar à conclusão de que o mau, as provas, as dificuldades, “as travessias no deserto”, servem no final (ou pelo menos podem servir) para algo, conduzem a algum sítio, permitem chegar a esse objectivo difuso e desejado, pelo menos para aquele que aguentar e persistir. Assim, as piores provas podem chegar a “compensar” (ou a ver-se compen- sadas); os “anos perdidos” não se perdem, investem-se produtiva- mente; e o “mau” pode valer a pena e servir para algo (nem que seja para aprender, para resistir, para endurecer, para amadurecer). É um pouco a possibilidade de transformar as derrotas em vitórias, essa ideia tão querida por John Ford.

E é Griffith, claro, mais ou antes que Hitchcock ou Bresson, porque ele inventou a montagem, ele inventou a fragmentação. E, por isso, inventou a ubiquidade e a simultaneidade. E, por ende, o suspense, o diferimento, ou algo parecido: do sentido, da identificação do lugar, da compreensão cabal do que sucede, dos mecanismos da história. E não é apenas pela condição de tê-lo feito primeiro – o que Erice me contara sobre o filme e a sua rodagem fez-me pensar, antes de o ver, nos russos mudos, Dovzhenko, algo de Eisenstein; mas, na realidade, Erice recuou aos seus antecedentes, às origens, a Griffith -, sobre- tudo porque a escrita de D.W.G. é menos patente como “escrita” ou “grafia” e a sua atitude face à realidade é muito distinta, mais confiante ou porventura mais respeitadora. Levamos séculos, no cinema um já lá vai, dando voltas à palavra e ao conceito de “realismo” ou de “realidade”, e ainda se confunde realismo com “estilo de aspecto documental” ou com “narrar algo realmente sucedido”, quando, no fundo, não me parece nada que tenha a ver com isso, mas sim com uma atitude mais geral, que não implica conformismo- “nem com as  coisas como estão” nem “com as coisas como são” -, mas contar com algo que existe, e é real, mesmo se é algo fabricado ou imaginário, e admiti-lo como tal, sem falseá-lo. O que manipula Griffith não é a realidade que tem ante os olhos e a câmara – e dá igual ser um actor com barbas postiças, um décor, um cenário pintado, poder ser construído com irrealidades ou ser um rio real, uma rua autêntica, um mendigo profissional e não um actor -, mas os fragmentos que captou dela, e que já transmutou noutra coisa, mais essencial, mais interpretada, mais artificiosa, mais “artística”: os planos, o cinema. E acredito que é Griffith a origem de muitas das coisas novas que este pequeno filme a preto e branco traz. Não é apenas o mais fragmentado (e, subtil e indirectamente, o mais em “primeira pessoa”, o mais despido), mas também o primeiro em que em vez de sucessão (apenas nalguns instantes, os mais abstractos e os mais oníricos, de El sol del membrillo) há um sentimento de simultaneidade, de rit- mos diferentes apresentados ao mesmo tempo (costuma ser um dos problemas entre todas as personagens do Erice, que se movem a ritmos distintos, que têm diferentes sentidos, concepções ou sentimentos do tempo; mas isso via-se sempre a partir do ponto de vista de uma delas, que talvez nem intuísse essa diferença que impedia a sincronia, que só se produz em momentos excepcionais ou muito breves, quase para se “deter” o tempo, como quando Antonio López e Enrique Gran cantam, às vezes quando Antonio pinta ou se prepara para arrancar, como sucede quando pai e filha bailam após a Primeira Comunhão ou falam no restaurante em El sur). E há essa mesma forma, tão directa, de colocar-se ante os objectos e as coisas, e deixar que respirem (ou durmam), que tinham alguns dos primeiros (mais que “primitivos”, e não todos), forma essa à qual é tão difícil voltar (à parte de que quase ninguém aspire a ela, muito pelo contrário). Essa “impertubabilidade” ante o que sucede (que pode ser terrível, ominoso, grave, virtualmente melodramático) que tanto se tem visto em Rossellini, está já, no fundo, também em Griffith. O mesmo que essa misteriosa restituição da sensação de fluidez conseguida paradoxalmente mediante a fragmentação e o passo de um ponto a outro, de um lugar a outro, de uma personagem a outra, evitando a dispersão, englobando-os num mesmo fluxo temporal. Trata-se, no fundo, como sempre acontecia no chamado cinema clássico, de estabelecer pontes, construir elipses, montar o que está separado, ou que se separou para, isoladamente, se ver melhor, se analisar, para não estorvar com o seu amontoar, para recuperar a unidade e assim fluir como um rio.

Miguel Marías