LONGE
Portugal | 2016 | Cor | 37
Realizador: José Oliveira

Sinopse: Um Homem vai-se aproximando de uma grande cidade pelos acessos mais secretos, áridos, selvagens. Chega e avista a cidade de Lisboa dos altos e por cima dos montes. Lá, de onde saiu há muitos anos, sente-se um estranho. Reconhece e não reconhece a paisagem e o ambiente. Que o atrai e o repele. Procura amigos, conhecidos, lugares, uma filha que lhe chegou por carta tanto tempo passado. Descobre e redescobre um último reduto onde se sente em casa. Mas parte, no fim, parte.

 

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LONGE

Longe de José Oliveira é simples e complexo. Simples porque se limita a seguir o caminho de um Homem, presente em todas as cenas do filme, de uma forma aparentemente evidente, linear (pode ser apenas o dia de um Homem com princípio, meio e fim) e clássica na sua escala de planos (na tradição western ao “longe”, entre planos fixos fordianos e panorâmicas funcionais à Hawks). Complexo porque, sem alarido, esse percurso está cheio de buracos, dúvidas e bifurcações. De onde vem esse Homem? O que terá feito para ter sido afastado da dita civilização? Porque procura uma casa e bate a todas as portas? Porque ora chora ora ri? Não há psicologia que nos esclareça sobre este Homem que chega a Lisboa com uma boina à “Quiet Man” e uma mala de viagem à Júlio (Rui Gomes), o inocente assassino em “Verdes Anos”. Há, sim, como em Rossellini ou Boetticher, uma única possibilidade de revelação através da força bruta das coisas, matéria e memória dos comboios, das fábricas, das canções. Será um maldoso à espera de redenção? Será um ferido, dilacerado ou encornado como os cowboys de Mann, Ritt ou Ray? Será um “humilhado e ofendido” das promessas políticas e das greves gerais que em cartazes se anunciam? Servindo essas ambiguidades, agudizadas pelo extraordinário trabalho de fotografia, de som e de montagem dentro e fora dos planos, estão as subtis mudanças de género e registo, o “cinema de invenção” em cada cena. A personagem tanto atravessa um campo de flores em assombroso lirismo como mergulha na mesma desapiedada multidão que cercou “Belarmino” ou ignorou a dor de John Sims (James Murray) em “The Crowd” de Vidor; tanto lhe morre o grito na garganta de um passado elidido como se dá presença a um momento bem passado em amorosa alegria; tanto “descasca cebolas” diante do espelho como sorri, sozinho e acompanha- do, entre copos e lembranças de um tempo que não volta. Um registo, por vezes quase documental, sempre soprado pelo lado épico. Foi, de resto, do Truffaut crítico de quem me lembrei (dizia que todos os grande filmes são tributários da mitologia grega ou dos contos infantis), quando vi essa espécie de templo em ruínas (vide “Big Wednesday” de John Milius) que enquadra ao “longe” um barco perdido no mar; ou quando a panorâmica que acompanha o protagonista nos sugere o “Rato” do campo (acossado pelo maléfico som dos automóveis) em visita ao “Rato” da cidade. Anacrónico no tempo e perdido no espaço desordenado de prédios e estradas, este inadaptado também padece do síndrome “Liberty Valance” dos últimos westerns de Ford (e dos primeiros “retirados” de Peckinpah, expulsos da civilização pelo incessante rugir do progresso nefasto), recordando aqui o tremido comboio que transporta “o homem que matou Liberty Valance” e o Ethan Edwards que devolve Debbie a casa antes de vaguear eternamente pelo deserto em “The Searchers.”

A pergunta deste filme de José Oliveira é simples e complexa: quem é este Homem sem nome? A resposta, simples e complexa, é José Lopes, que aqui encontra e abraça a sua própria filha antes de partir para “longe”. E agora, José?

Mário Fernandes 4 de Março de 2016

 

LONGE

Não podendo desde logo ter o afastamento possível sobre a obra, pelo meu envolvimento profissional, técnico e artístico, proponho que o seguinte texto seja uma reflexão pessoal e altamente subjectiva da minha relação e abordagem para com uma história e essencialmente uma personagem.

Conheço o José há mais de uma década, dos tempos de formação da Escola Superior Artística do Porto. No fundo parte da minha formação foi também responsabilidade do José Oliveira, pelas conversas, pelo pensamento e acima de tudo pela paixão e conhecimento pelas diversas cinematografias que nunca escondeu e sempre partilhou.

Apresentou-me “Longe” no papel, sem me colocar perante conceito algum, apenas uma narrativa no papel. Convidou-me para ser Director de Fotografia, ao ler fui descodificando parte da aprendizagem que tive com o José, fui relembrando pensamentos partilhados e memórias mais ou menos esquecidas e diluídas pelo tempo e afastamento.

O título por si só levantou uma série de questões éticas e consequentemente estéticas, que ao fim de algumas linhas se tornaram de resposta clara, afastando-se assim dos campos da metafísica e da epistemologia que inicialmente me invadiam. Pelo que conhecia do José, o que me quis dizer com o título era o que realmente “Longe” queria dizer, o afastamento, a distância do espaço/tempo, o último horizonte.

Logo na primeira página, estavam resolvidas todas as questões que poderiam surgir, tinha já completa noção do tom, do tempo, do espaço, do mundo que me apresentavam. Pelo conhecimento e reconhecimento que tinha pela pessoa tudo fazia sentido. “Longe” era apenas, por assim dizer, um filme sobre a distância física e temporal na sua essência, não havia nada de supra- humano.

Conversámos após a minha leitura, e sim, aquilo que absorvi do texto era o que o José queria para o filme. Fácil então. Terminamos o filme há pouco tempo, a percepção que tenho é que já o vi antes, muito antes ainda no papel, tendo apenas o clima pela densidade do céu acrescentado pequenas noções plásticas ausentes no papel, tudo o resto era o filme que me havia sido apresentado, em forma literária, mas era o filme.

Não temos um título no início, o filme apresenta-se na sua essência – som e imagem, e será por eles que desde o primeiro momento teremos uma noção clara de distância física e temporal e essa, a noção de “longe”, acompanha-nos sempre, desde que nos apresenta uma personagem que vem de longe, até ao final em que nos despedimos de uma personagem que vai para longe.

Visualmente, enquanto director de fotografia, surgiram-me logo duas ideias fundamentais, planos abertos e muita profundidade de campo, deixar ver o horizonte, ter noção da longa viagem e acima de tudo deixar espaço a uma personagem, para ver, viver, procurar e descobrir. Por assim dar espaço e tempo para viajar, sem adulterar a percepção dessa mesma viagem, sem manipular ou julgar uma personagem, dando-lhe espaço para ser livre e dando essa mesma liberdade a quem acompanha essa viagem.

E será com esta liberdade que “Longe” revisita um conceito tão comum como a viagem, seja a descoberta, a redescoberta, a procura, a conquista, o perigo, o desconhecido e a aventura. Enquanto amigo, técnico, profissional, “Longe” significa essencialmente a proximidade de memórias e partilhas com um realizador, com um actor, com uma equipa e com o horizonte.

Manuel Pinto Barros