MERCADO DE FUTUROS
Espanha | 2011 | 35mm | Cor | 114’
Realização: Mercedes Álvarez
Cópia: cedida pela autora, digital HD CAM, versão original em espanhol, inglês e catalão (projeção com legendas ele- trónicas em português)

Sinopse
A mais recente longa‐metragem de Mercedes Alvarez, que se notabilizou como uma das mais promissoras cineastas espanholas contemporâneas com “El Cielo Gira”, volta a centrar‐se nas questões do tempo e da memória, agora a partir da cidade na perspetiva da especulação imobiliária e na dimensão virtual do espaço urbano. A Álvarez interessa trabalhar “refletindo sobre aspetos do mundo que criámos e sobre o nosso papel social nele (…), houve um momento em que todos pensámos que podíamos ser ricos e em que muita gente especulou com a venda, e isso tem consequências na transformação dos bairros e das cidades”.

 

MERCADO DE FUTUROS

Esteve para se chamar “Terras sob um sol invernal favorável”, o que faria esperar um filme relacionado com o anterior, o que teria decepcionado, em vez de surpreender. Pôde também ter sido intitulado “Bolhas”, “Pompas de sabão”; até “Vendedores de tapetes”, “Puro Ar”, “Guiados por cegos”, “Um mundo virtual” ou “Vende-se tudo”. Em qualquer caso, apanha de um modo surpreendente e impressionante as causas da crise sobrevinda no ano 2008, mas que levava vários anos em gestação e incubação nos mercados globais.

Surpreende, sobretudo, para quem conhece a única longa-metragem anterior de Mercedes Álvarez, “O céu gira” (2004), pois, à primeira vista, não tem nada a ver, fala-nos de outro mundo, com outro som, outra estética, outras preocupações, outra ética. Por oposição ao mundo rural, quase vazio, despovoado, em vias de extinção, invadido por bosques de moinhos de energia eólica, nos campos áridos em torno de Soria capital, movemo-nos aqui em territórios urbanos globais, se não idênticos pelo menos equivalentes e muitas vezes confundíveis, nos quais se fala (mal) inglês e sem pensar, onde importa mais decidir (comprar, vender) com rapidez do que com razões e fundamentos económicos, deixando a determinação total do valor no valor de câmbio, esquecido por completo o de uso. Vejam-se as cenas captadas dos brokers, talvez ainda mais as da IFEMA (a Feira de Madrid) ou lugar paralelo em Barcelona, com esses vendedores imobiliários que dizem com impertinente segurança e rapidez parágrafos de retórica publicitária oca, que não significam nada, mentem mais do que falam, que falam mal e não dizem nada, que suam e são desatentos e mal-educados, intrujas profissionais, que erigem literais castelos de papel para enrolar clientes e investidores. Ao contrário de Michael Moore, Mercedes Álvarez não “diz” nada nem caricatura (porque já é grotesco o que mostra), mas dá a ver o que são e como funcionam, a desordem frenética em que se movem e as decisões precipitadas sem base real nesses “mercados de valores”, que foram deixados, sem regras, a dominar a economia e, através dela, o mundo. São vendedores de felicidade em doses, através de folhetos publicitários, fotos, vídeos, powerpoint, em maquetas. Ou esses wizards ou gurus que dizem enfaticamente disparates sem sentido, convertendo-os em dogmas à força de repetições aos gritos, e que lembram, no fundo, Hitler e o seu crédulo público hipnotizado de votantes e seguidores (e quem os segue, facilmente seguiria Hitler). Está bem sugerida (sem ênfase) a conexão guerra-negócios, tão patente também no emaranhado religioso-militar-hierárquico de todos os manuais ou masters de recursos humanos. Veja-se como passam ao (mau, atrozmente pronunciado) inglês, com que vozes, com que gestos, com que tensão corporal actuam. Uma imagem em movimento com som vale mais que mil discursos com palavras.

Este filme denso, aterradoramente real, parece-me uma autên- tica mostra de cinema-ensaio avançado. Por sorte, há um ou outro momento de pausa, de repouso, de silêncio; por exemplo, as árvores de fruto cultivadas junto à auto-estrada e linhas do comboio, o velho de rasto barcelonês que não vai ali vender, mas passar um tempo. Cenas que têm um ritmo mais lento para contrastar por si mesmas, sem bengalas explícitas. Não sei se Mercedes Álvarez alguma vez viu – antes ou agora, quatro anos depois – Nicht ohne Risiko (2004) de Harun Farocki ou Staub (2007) de Hartmut Bitomsky, que são, com Film Socialisme (2010) de Godard, filmes em que pensei (e um pouco também Playtime (1967) de Jacques Tati). Em qualquer caso, Mercado de futuros explica implicitamente parte do que se passou, se passa e se continuará a passar.

Miguel Marías