MUITO ALÉM
Alemanha/Portugal | 2010 | cor | 50’
Realizador: Mário Gomes

Sinopse
Uma pequena aldeia portuguesa está a morrer lentamente, depois de os seus habitantes terem emigrado. No Verão, no entanto, a aldeia enche-se de vida por umas semanas antes de voltar a mergulhar no silêncio.

 

MUITO AQUI

Muito além das imagens no olhar de quem as vê e nós apenas ouvimos

Muito além do silêncio dos foguetes

Muito além no lugar das casas de outro tempo

Muito além numa aldeia órfã e viúva

Muito além do que ouvem os espectadores da TV, do sermão da missa, da tourada, do presente

Muito além do quê? de quando? De onde? Além da fronteira? Além vida? Além longe?

Regressar a um longe da memória pode resultar em encontrar uma outra coisa.

Na viagem apenas nos guia a linha branca da es- trada que rima com o fiar do linho ficcionado de um outro documentário dentro do filme. Essa filmagem de uma ficção que se pretende documento vem lembrar aos jovens as tradições que só encontram realmente eco nas touradas. Vive-se na memória das coisas, numa versão parda, comercializada, capitalizada e cervejada dos encontros.

As vozes são as das pessoas e não há ninguém do exterior que explique o que quer que seja. Mesmo  a sessão de slides não tem qualquer pretensão de explicar. Comentadores em tempo real do que se identifica.

Não precisamos de ter, como nas reportagens, alguém a dizer o que está a acontecer, o que vai acontecer, o que não aconteceu, o que já aconteceu. E são as vozes do filme, ou da vida melhor dizendo, que nos lembram que é para o filho da terra/rapaz atrás da câmara que as pessoas estão a falar, nomeadamente na casa e família do realizador nos slides e na expressão da viúva “lembraste? Quando tu eras garoto…”.

O semáforo chega ao sinal vermelho. Paramos temporariamente numa aldeia que já parou no tempo. E a placa indica que já não estamos lá.

Mas regressa-se a cada novo verão para reviver, recordar ou simplesmente veranear as tradições.

E talvez o filme não seja tanto acerca da aldeia em si. Ou do que se pode reportar da sua realidade actual. Ela nem sequer é nomeada a não ser nessa placa de indicação de fim de localidade.

Filmam-se caravanas de farturas e os gestos de corpos sem rosto, repetidos um pouco por toda a parte. Grupos de pessoas aparecem sem possibilidade de identificação, na procissão, no salão de festas. E a caravana passa e voltará o próximo ano.

Dos slides e dos planos postal de filme antigo não há passagem do tempo há uma identificação, fixa-se o que queremos guardar dessa aldeia do passado mas é uma aldeia vazia, quase sempre só com as casa e campos abandonados como a carcaça do carro que parou definitivamente ali.

Vendem-se casas para habitantes temporários que as modernizam e actualizam e só os pedaços de terra vendidos no cemitério prometem população constante.

Reúnem-se famílias uma vez por ano em lares renovados mas o único permanente é o lar de idosos.

As imagens que esperamos ver da acção, do presente vivo das touradas por exemplo, é-nos dada em ralenti (cena do forcão) ou em miniatura (toro de brincar) ou pela cara dos espectadores (panorâmica 360o da praça) e depois tudo vazio, em planos fixos: os curros abertos (e estreitos) a plateia branca.

Um olhar sobre a nossa aldeia da ponte, que é também a aldeia do país. O país da aldeia urbana, migrante…

Em que as casas já não existem e os toros são de brincar.

Em que se juntam moscas do final da tarde.

Em que olhares falam com discursos religiosos. E os púlpitos estão vazios.

Em que das escolas dos velhos saem jovens uma vez por ano.

Em que se vai de burro para cavalo, mas, preferen- cialmente, de mota.

Em que retratos antigos são pinturas e foguetes mudos são golpes.

Em que um fio de linho encenado rima com as linhas da estrada da noite.

Em que se mostra o papa nas várias línguas, mas com a imagem televisiva desfocada

Em que Santo António é levado por cabeças em contra luz, e se vê, através de uma teia de aranha, um tempo que já não pertence a lado nenhum.

Marta Ramos

 

GESTOS DE MEMÓRIA

A nossa presença é decisiva no quotidiano. Mas de que presença falamos? Trata-se de uma presença prepositiva, como um enunciado de composição do humano. Este enunciado parte muitas vezes de um processo de pré-visão e produção de memória, o que nos leva muitas vezes a questionar sobre o que é feito daquilo que íamos ser?
Neste sentido, tudo o que filmamos é biográfico e filmar neste sentido é dizer que “eu sou os filmes que faço”. Hoje, acredito que há propostas artísticas que nos fazem ser melhores pessoas e o gesto de filmar pode é procurar alternativas, é como mergulhar num líquido, protector e destrutivo, onde o espaço não é apenas de perguntas ou respostas mas antes de um estar inquieto e interpretativo, com sentido de si.

As representações do mundo, a apreensão da realidade, os procedimentos, não podem ser só vistos como estados transitórios, que são, mas como realidades complexas que merecem o estatuto daquilo que chamaria “um momento do humano”. Às vezes, olhamos com encanto, ou inquietação, ou complacência, determinados episódios que queremos memorizar. É mais uma questão de imaginação que de óptica. Jacques Lacan diz que “A verdade tem uma estrutura ficcional”.

A investigação está na base da própria criação. O resultado é um processo em constante questionamento e não apenas o resultado daquilo que vemos. A atitude de proximidade e afastamento do realizador, torna o processo criativo e a intencionalidade num resumo de fluxos performativos centrados num mundo de ideias conceptuais, sonoras, visuais e narrativas traduzidas em combi- nações técnicas e estéticas, no qual o importante não é descobrir coisas, mas descobrir-se, criando mecânicas de memória.

Se colocarmos a questão sobre o que é o Documentário, provavelmente, a primeira ideia que surge, e que diferencia o documentário de outro género cinematográfico, é o facto destas imagens serem vizinhas do real e do espontâneo. O documentário é sem paralelo a interpretação criativa de uma realidade e investe no registo de aspectos relevantes da existência dos seres vivos, geralmente não-actores, cuja observação seja relevante.

O documentário é um registo de argumentos e propósitos que apelam à lógica e às emoções. A ideia é documentar a vida e montá-la consoante os eventos mais relevantes. Muitos são os impulsos que dão princípio à vontade de se filmar. Podemos até considerar que, praticamente, qualquer acção ou comportamento humano são dignos de registo, tudo depende do nosso ponto de vista.

As coisas mudam porque nós mudamos e este ciclo propõe uma escrita de imagens e sons que revelam um inconsciente colectivo, complexo e inventivo, é a prova real de uma memória contemporânea sem nome. Uma provocação por excelência. Neste sentido, proponho que nos disponibilizemos a retirar tudo o que nos ocupa a cabeça para melhor recebermos este tão particular desafio. Estes Encontros Cinematográficos centram a sua proposta na analogia: eu vejo-te, tu vês-me. Existe nos Encontros uma introspecção de significados e conhecimentos, nesta perspectiva, e num gesto infinito, felicito os programadores e reitero ao Carlos Fernandes e à Maria Lino, a oportunidade que me deram para participar neste projecto.
Muito obrigado.

Pedro Sena Nunes