NUMÉRO ZERO
França | 1971 | 35mm| P&B| 111’
Realização: Jean Eustache
Cópia: da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema em 35mm, versão original legendada em português, 3040mts., 111’, janela de projeção 1:1,37, 6 bobines

Sinopse
Um inédito de Jean Eustache, de que só se conhecia uma versão encurtada (intitulada “Odette Robert”) para exibição televisiva nos anos 80. Consistindo, basicamente, numa longa conversa entre Eustache e a sua avó, Odette Robert, NUMÉRO ZERO já foi descrito como uma espécie de auto‐ retrato por interposta pessoa, que reduz o cinema ao seu dispositivo mais simples não deixando de o inscrever no seu próprio tecido: o filme acaba quando se acaba a película disponível ‐ “voilá, c’’est fini”, é a última coisa que se ouve, quando o écran já está negro.

 

NUMERO ZERO

Em 1971, um ano antes de rodar La Maman et la Putain, Jean Eustache filmou uma conversa com a sua avó, Odette Robert, numa sala da sua casa. Deste encontro surgiria depois Numero Zero, um filme-retrato, um filme de família. Jean Eustache decidiu filmar a sua avó após uma conversa que mantivera com ela, na qual ela lhe contara assuntos familiares importantes. Por essa altura, Eustache ainda não sabia se estava a fazer um filme ou não e, de certa forma, isso não lhe importava. Simplesmente, não pensava mostrá-lo. O filme respondia- como diria mais tarde- a um mal que tinha dentro, a uma necessidade vital; a urgência de escutar a sua própria história, o abandono prematuro da sua mãe, as dificuldades na vida dos seus antepassados… No filme,
o dispositivo de rodagem não se esconde: aí estão as claquetes, duas câmaras para que não haja interrupção na conversa…e uma garrafa de whisky em cima da mesa. Eustache, de costas para a câmara, diz à sua avó: “…Gostaria que me falasses como fizeste no outro dia”. Com esta mínima “mise en scène” da palavra, sus- pendendo à beira do precipício, há seis gerações de história da vida privada, infidelidades matrimoniais, a passagem da guerra, os apertos e misérias. Assistimos a um relato cru da vida, narrado sem interrupção.

De certa forma, o título escolhido por Eustache já diz tudo: Numero Zero aludia à necessidade de recomeçar, de ir à origem das coisas, tanto no cinema como nos assuntos de família, assuntos e culpas que há para ventilar. Nas entrevistas concedidas pelo cineasta, aparece mencionada, uma e outra vez, quase de modo obsessivo, essa pulsão de filmar por necessidade. A origem, a origem do gesto de filmar, era para Eustache algo muito secreto, tão secreto e primitivo que escapava a qualquer análise ou compreensão. Essa pulsão teria que ver com a necessidade de conservar na memória os seres queridos?

Tão amplo e diverso como o mundo, o cinema é, e pode ser, muitas coisas. Atrevo-me a pensar que para Jean Eustache o cinema era também uma forma de cura, uma espécie de vingança contra as ofensas da vida, a vida doméstica e os seus conflitos familiares, o território do amor, com as suas promessas, o seu campo de batalha e as suas terríveis encruzilhadas. Mas Eustache não só pratica e desenvolve um cinema da confidência – confidências de alcova em La maman et la putain, confidências de família em Numero Zero- como também trata o espectador como um confidente. E desse modo, nessa relação de conflitualidade que vivia com as suas amantes, com a sua família, Eustache deixa nos seus filmes a porta de casa aberta para que o estranho, o espectador, veja e escute. Não só o deixa espiar como lhe fala em voz baixa. E o facto de ventilar terríveis assuntos de família, de pôr em cena as suas relações com as mulheres, forma parte da sua cura.

Há, portanto, um tipo de cinema ao qual podemos chamar de confissão e intimidade, da confidência, no qual se mostra ante o espectador anónimo aspectos da própria vida. E nesse cinema confesso que há exemplos de todo o tipo. Abundam, sobretudo hoje em dia, e ainda mais com a ligeireza que propicia a pequena câmara digital, filmes em que se mostram aspectos escabrosos da própria vida, tratados com uma certa indecência e até exibicionismo, por vezes gratuito. Constituem quase um género, um fenómeno, em que a própria vida se converte em espectáculo. Há nesses exemplos uma espécie de tremendismo, de realismo sujo, no qual se procura a comoção por si mesma. Em Eustache, por sua vez, a câmara actua durante a rodagem como um catalisador da confidência. Se esta se produz, não sem risco e apesar da dor para o próprio cineasta, haverá finalmente uma possibilidade de redenção. No final do filme, a avó dirige-se ao operador (Philippe Théaudière) e ao seu neto para lhes perguntar “que tal a luz?”, “Estive bem?”, “Filmaste todas as tuas bobines?”

Mercedes Álvarez