PIERRE LEÓN
1959 | Moscovo | Rússia

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Biografia:
Pierre Leon é realizador, encenador, actor, tradutor, músico e critico.
Nascido em 1959 em Moscovo, onde o pai era correspondente do L’Humanité, Léon passou boa parte da juventude na Rússia, não sendo de espantar a presença regular, nos seus filmes, da Rússia e de elementos da cultura russa – OCTOBRE ou L’ADOLESCENT, que é, como L’IDIOT, uma adaptação de Dostoievski. Em Paris fez-se “cinéfilo” (também como “personagem”: vimo-lo nos CINÉPHILES de Louis Skorecki), crítico de cinema (pertence ao conselho de redacção da Trafic, escrevendo assiduamente na revista), actor (por exemplo em filmes de Jean-Claude Biette, de quem foi colaborador regular) e realizador, alternando ficções “clássicas” (Chekhov, para além de Dostoievski) e outras menos ortodoxas, frequentemente num registo “familiar” (e videográfico), em torno de um núcleo constante de amigos e colaboradores (como o irmão Vladimir, também cineasta, com quem Pierre co-assinou NISSIM DIT MAX, sobre o pai de ambos, um dos raros filmes dos irmãos Léon já mostrados em Portugal).
(Institut français du Portugal)

Filmografia:
1994 Li per li
1996 Le Dieu Mozart
1997 Oncle Vania
1998 Le Dieu Mozart II
2000 L’Adolescent
2003 Nissim dit Max (coréal. Vladimir Léon)
2006 Octobre
2007 Guillaume et les sortilèges
2008 L’idiot
2011 Biette Intermezzo
2011 Biette
2013 Par exemple, Electre

 

CONVERSA COM PIERRE LEÓN por Teresa Garcia e Pierre-Marie Goulet (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2014)

O filme está extremamente “decupado”, com planos, nomeadamente de olhares, por vezes muito breves. Explicaste que as contingências materiais, nomeadamente o facto de não poderes reunir todos os actores ao mesmo tempo, te obrigaram a elaborar um plano de trabalho muito fragmentado. Parece-nos, no entanto, que essa fragmentação, esses olhares “perdidos” que procuram lugar para poisarem e não parecem encontrar interlocutores – e por vezes nem sequer tentam – constituem a própria matéria do filme, revelando a solidão e a confusão das personagens. A diferença de tratamento entre as duas partes do filme – antes e depois da entrada de Rogojine – confirma aos nossos olhos que esta fragmentação é muito mais do que uma resposta às contingências da rodagem. O que é que ela representa, de facto?

Filmar como eu filmo há trinta anos, isto é, em autarcia quase total (forçada, devo sublinhar, porque a autarcia não é o meu prato favorito), deu-me água pela barba, mas ensinou-me igualmente
a deixar de recear as dificuldades puramente materiais. Estou habituado a que o plano de trabalho seja perpetuamente posto em causa e a já não confundir exigência com caprichos. Como diz o cozinheiro de “A Regra do Jogo”: “A senhora La Bruyère comerá o mesmo que os outros; aceito as dietas mas não as manias”. Para mim filmar é isso: tentar transformar um regime constrangedor num jogo.

Para “O Idiota” fui obrigado a “decupar” completamente o filme antes do primeiro dia de rodagem para poder estabelecer o plano de trabalho, em função da presença deste ou daquele actor no plateau. Sabendo que precisaria de filmar uma grande parte dos planos em que as personagens teriam de dar a réplica a um interlocutor, que podia ser a minha assistente ou eu próprio, interroguei-me sobre a justeza deste método em relação à ideia geral que eu tinha do filme. De resto uma ideia geral bastante vaga e que se tornou muito mais viva depois de me ter apercebido que esta fragmentação do espaço e a sua reconstituição através do jogo de olhares era uma tradução possível daquilo  que eu tinha na cabeça. A partir desse momento, a mise-en-scène surgia quase naturalmente: pessoas nas suas bolhas, ou melhor dizendo, cada uma no seu “estojo”, para usar uma palavra de Tchékhov, encurraladas e reduzidas a suportar um ataque cuidadosamente organizado por Nastassia Philipovna. Com efeito, há uma ruptura depois da chegada do bando de Rogojine (exactamente a meio do filme): e foi, uma vez mais, a realidade da rodagem que a ela me levou. Pela primeira vez começamos a ver grupos de pessoas num mesmo plano. Mas é Natassia Philipovna que domina, não apenas o espaço (ela é a única que pode dividi-lo e controlá-lo, se assim se pode dizer) mas igualmente o tempo, já que se encarrega não só dos seus próprios movimentos como do das suas “tropas”. Temos uma prova disso quando a vemos reagir ao toque do relógio de parede: o seu rosto ilumina-se. O seu cálculo estava certo!

Parece-nos que essa fragmentação do espaço não é abolida, mas acentuada, pelo trabalho posterior de montagem. Na primeira parte – até à chegada de Rogojine – exceptuando o Príncipe e sobretudo Nastassia Philipovna, as personagens não param de procurar onde poisar o olhar: mal o passam da direita para a esquerda o súbito corte surge, não permitindo que o olhar se fixe e estabeleça uma relação com o outro. Em consequência disso, parece que a fragmentação, constrangimento a que a rodagem te levou, é deliberadamente amplificada pela montagem, deixando as personagens desorientadas, procurando apoios que não encontram. Será isso apenas uma impressão subjectiva da nossa parte?

Não, antes pelo contrário! Devo confessar que a montagem é o momento de que mais gosto. A rodagem, para mim, é uma confrontação permanente com a realidade, à qual devo (sim é um dever) adequar o filme que estou a fazer. É como que uma verificação da realidade através da poesia – dois mundos contraditórios que têm de encontrar o seu ponto de contacto. Pode haver felicidade nisso, mas prazer não. Reflectir não é possível, sob o risco de abandonar tudo, quando se mede a distância entre o resultado e aquilo a que chamam as intenções, embora nunca tenha percebido o que isso quer dizer. No momento da montagem, descubro, com o montador, todos esses planos em bruto (nunca vejo as “rushes”) e partimos da estaca zero. Claro que já me tinha dado conta que o filme, na rodagem, tomava uma certa direcção, que eu não podia nem queria identificar, e que chegara o momento de deixá-lo vir até mim, nessa nova disposição cujas leis procurávamos descobrir. Diria que essas leis, descobertas pouco a pouco por Martial Salomon (o montador) e por mim, relevam por um lado da comédia e, por outro, do cinema mudo. Pode parecer paradoxal por se tratar de uma história sobretudo dramática e cheia de conversa. Mas reparo até que ponto acentuámos certas rupturas (visuais ou sonoras, como o olhar para a câmara de Gania (Serge Bozon) ou o ruído do vidro partido, no fim), exagerámos certas expressões do rosto, etc. Efectivamente, pouco a pouco as personagens perdem pé e, tomadas pelo pânico, param de preocupar-se com a sua imagem, até aqui unicamente social, mundana, categorizada (o protector Totski, o velho gaiteiro Epantchine, o bobo Ferdychtchenko), para deixarem escapar mímicas, caretas, olhares que traem a sua perplexidade perante a invectiva de Nastassia, que é, ao mesmo tempo, Electra e Pentasileia.

O modo como filmas as relações entre o Príncipe e Nastassia é radicalmente diferente: os olhares cruzam-se verdadeiramente, as vozes podem ser quase murmúrios: dir-se-ia que estão sós no mundo. Parece que trabalhaste muito esta “música” das vozes que acentua o contraste entre as personagens “em representação social” por um lado e o Príncipe e Nastassia, por outro. Essas variações na musicalidade das vozes são fruto de um longo trabalho prévio de ensaios, de ajustamento?

Não ensaiamos absolutamente nada. Não tinha tempo para isso e, de qualquer maneira, não o teria feito. Não neste filme pelo menos. Pareceu-me que os actores estavam em forma, quase até do ponto de vista desportivo e que saberíamos ajustar o tiro. A instalação puramente técnica de cada plano, por vezes complicada, como para os planos de Rogojine, permitia-nos esses ajusta- mentos. A ideia de isolar praticamente Nastia e Mychkine surgiu durante a rodagem: eu contava com o efeito de perturbação que os seus diálogos provocariam certamente nos outros convivas e no espectador, por um efeito de contaminação. Sim, eles estão sós no mundo, sós naquele mundo, de onde arrancam alguns momentos que só a eles pertencerão. São momentos de sinceridade absoluta: Mychkine é incapaz de mentir (excepto para evitar ferir alguém) e Nastia, quando está diante dele, abandona qualquer tentativa de representação. Mychkine é o único que tem direito às suas lágrimas. E é também o único a afinar a sua voz pela de Nastia. Quando eu trabalhava na adaptação, embora a escolha dos actores não tenha sido exactamente a que estava prevista, tinha a voz dos actores na cabeça e tentava encontrar para cada qual um fraseado particular: o ritmo, a elocução, a cor das vozes, que são muito diferentes – mas era o que me interessava. Eu sabia, ou esperava que, apesar de (e graças a) essas diferenças, sairíamos ilesos desta situação, quer dizer que chegaríamos a uma partitura onde cada instrumento se destacaria do conjunto de maneira analítica sem um verdadeiro fondu. Existe dissonância certamente (é o que parece indicar o grupo de pessoas do piano que encerra o filme), mas um acorde, mesmo dissonante, não deixa de ser um acorde.

A propósito de acorde (mas mudo desta vez), um campo/contra- campo intrigou-nos (e fascinou-nos): pouco depois da sua chegada a casa de Nastassia, Rogojine, depois de ter dado os cem mil rublos a Natassia Philipovna, de se ter admirado com a presença de Gania, apercebe-se que o Príncipe Mychkine está sentado perto dele e sorri-lhe e o Príncipe responde a este sorriso, sorrindo-lhe por seu turno. Em todo o filme é talvez a única troca de olhares “generosos” que existe entre duas personagens (se exceptuarmos os de Nastassia e do Príncipe, mas que são de outra ordem). Com estes dois planos muito breves revela-se uma relação muito particular entre o Príncipe e Rogojine, e isso antes de Nastassia anunciar a sua partida, com um e depois com o outro. Parece-nos que também é um indício de como tu pudeste trabalhar a adaptação do romance: aquilo que o leitor do livro sabe desde o primeiro capítulo, o jogo de espelhos que existe entre o Príncipe e Rogojine, é transmitido ao espectador através desta breve troca de olhares. Estamos a fantasiar?

Soube muito rapidamente que não filmaria todos os episódios do livro: não tinha nem os meios nem a energia suficiente para realizá-los. Logo, tinha presente e guardado no espírito que este capítulo devia expandir-se um pouco, que devia conter todas as linhas da história, nem que fosse apenas a ponteado. Foi assim com certas personagens, secundárias neste episódio, como Lebedev ou Keller, que foram alimentadas por tudo o que delas se sabe. A troca de olhares que referiram surgiu dessa estratégia de expansão. Exprime a amizade, complicada mas autêntica, que liga Mychkine e Rogogine. Incluo na mesma categoria de expansão, o olhar entre Rogojine e Gania que também deixa perceber uma anterioridade, um precedente, um conflito já constituído. Essa passagem é para mim o centro nevrálgico do filme.

Como a nossa questão precedente deixa supor, conheces perfeitamente a obra de Dostoiévski. A partir dela já realizaste um filme, “O Adolescente”; um outro filme teu, “Outubro”, inicia-se com uma cena no compartimento de um comboio (exactamente como a cena inicial do romance “O Idiota”), em que as personagens estão a ler “O Idiota”; em seguida este episódio 4, “Nastassia Philipovna” e, por fim, preparas-te para rodar um filme inspirado em “O Duplo”. A tua infância e a tua escolaridade passadas na Rússia e em Moscovo não bastam para explicar tudo, já que poderias ter escolhido um outro autor russo. Quais as afinidades que te atraem tanto em Dostoiévski?

“Isso vem-me da minha mãe”, para citar uma vez mais “A Regra do Jogo”. Ressalvando que a minha mãe detesta Dostoiévski, demasiado tagarela para o seu gosto. E nasci no mesmo dia que ele. O que sempre me atraiu nele, mesmo quando não compreendia nem metade do que escrevia (eu tinha treze anos quando li “Os Demónios” pela primeira vez), é o seu modo de escavar a natureza romanesca do homem, de nela penetrar o mais profundamente possível, correndo o risco de morrer sufocado, para encontrar o ponto doloroso onde começa o sofrimento dialéctico. É a sua capacidade, enquanto romancista, de acompanhar a mais ínfima das suas personagens, de a deixar expor as suas ideias, dúvidas, contradições, deixando-lhe, ao mesmo tempo, o seu enigma constitutivo: o que é exactamente o contrário do sistema de vigilância instalado por Tolstoi. É a compaixão que avança com a sua dupla dialéctica, a crueldade – como acontece com Fassbinder. Para mim este enigma encontra-se no centro do cinema. E Dostoiévski é um argumentista formidável, nunca se pode prever nada, nada se passa como habitualmente, o que já enervava Tourguéniev. Por fim, penso que é uma mina de ouro para os actores. Quando filmei “O Adolescente”, em 2000, nunca pensei que começaria uma série de filmes deste autor, mas deixei-me ir! No fim do próximo verão vou começar a filmar “Deux Rémi, deux” que é uma adaptação livre de “O Duplo”, tão infiel quanto a de “O Idiota” foi fiel. E ainda não revelei tudo. Há um episódio dos “Karamazov” que sonho transformar num filme curto. E a ideia de rodar um outro sobre o terror paranóico, inspirado em “Os Demónios”, nunca me abandonou igualmente.

E para acabar: para acompanhar a projecção de “O Idiota” escolheste para apresentar “Dois Seres” de Carl T. Dreyer. Os dois filmes têm em comum o facto de decorrerem num único e mesmo espaço. Para além desta característica comum, vês outras ressonâncias entre eles?

Nunca pensei nisso. Não posso negar que para mim ele é o cineasta dos cineastas, talvez a par de John Ford e Fritz Lang. Por outro lado, quando estou a filmar os outros filmes deixam de existir. Logo, tudo o que eu roubo aos outros, faço-o inconscientemente. E depois tenho vergonha. Lembro-me de ter descoberto, com estupefacção, que muitas coisas de “O Adolescente” eram provenientes, por exemplo, de “L’Argent” de Bresson. Também fiquei menos satisfeito e não menos envergonhado, quando me dei conta que alguns planos de “O Idiota” tinham emigrado de “Gertrud”. Aceitemos, que outra coisa se pode fazer? Apeteceu-me apresentar “Dois Seres” pela simples razão de ser um filme quase desconhecido de Dreyer, por ele violentamente renegado, mas que eu acho fascinante, estranho, angustiante, cortante e seco, um policial melodramático que mistura “Scarface, o homem da cicatriz”, “La nuit du carrefour” e “Martha”. Um filme irrecuperável.

Lisboa/Paris, Março de 2014