…QUANDO TROVEJA
Portugal | 1999 | 35 mm | Cor | 89’
Realização: Manuel Mozos

Sinopse
A relação de António e Ruth termina inesperadamente. Ruth vai viver com Pedro, o melhor amigo de António. António, desesperado, deixa-se esmagar pelas suas próprias fraquezas. Mas, do bosque, surgem dois estranhos seres, Violeta e Gaspar, que vão interferir na vida de António.

 

UM PASSO, OUTRO PASSO E DEPOIS… | …QUANDO TROVEJA de Manuel Mozos

Início da carreira de Manuel Mozos, Um Passo, Outro Passo e Depois… tornou-se uma obra praticamente invisível. Porque, depois da perda dos materiais originais, só pode ser visto numa versão transcrita para vídeo, com péssima imagem (sem definição, cheia de “flou”, com as cores alteradas e deterioradas) e som em não muito melhor esta- do, que não é Um Passo, Outro Passo e Depois…. Apenas, infelizmente, a sua ruína.

E que podemos adivinhar a partir deste pequeno destroço sobrevivente? Em primeiro lugar, uma gritante contiguidade entre Um Passo… e o Xavier que pouco depois começaria a ser rodado. É verdade que alguns actores (Pedro Hestnes, Sandra Faleiro, Cristina Carvalhal) passaram de um filme para o outro, e que esse pormenor influencia a sensação de proximidade. Mas esse pormenor é apenas isso, um pormenor. Porque o tipo de personagens é bastante semelhante: jovens mais ou menos perdidos em paisagens semi-urbanas, ou na fronteira entre o urbano e o rural (a julgar pelo genérico final, o filme foi rodado na zona de Oeiras e Paço de Arcos). Os lugares são também bastante semelhantes: escolas, cafés, cenários duma espécie de “urbanismo incompleto” (ver a sequência nocturna, nas obras). O modo narrativo, mesmo que aqui se aposte numa linearidade que não seria a de Xavier, contém já alguns sinais do que Mozos depois desenvolveria com outro fôlego e outra amplitude: repare-se nas elipses, nos saltos espaciais e temporais, nos espaços em branco que ficam por preencher nas relações entre as personagens, espaços esses que o decorrer do filme se encarrega de esclarecer (ou não).

A que podíamos acrescentar a profunda melancolia que percorre todo o filme – e de que o “confronto” entre o grupo de jovens e o velho contínuo Nogueira (Canto e Castro) é simultaneamente um veículo e o ponto de chegada. Nogueira – grande interpretação de Canto e Castro – é uma personagem fascinante, no seu mutismo solitário, na sua marginalidade auto-imposta (“a minha vida está muito bem assim”, diz a certa altura). Mas também é tudo menos uma personagem “transparente”, e há uma relação de poder (o magro poder que lhe confere o estatuto de contínuo) muito interessante e muito equívoca entre ele e o bando dos miúdos: a noite da perda das chaves, passada entre o orgulho e a humilhação, confere à personagem uma complexidade fascinante, uma espécie de brilho “opaco” que a vai tornando cada vez mais perturbante.

Mais de dez anos depois de Um Passo, Outro Passo, e Depois, e antes de poder completar o Xavier que ficou pendurado no princípio da década de 90 e só veio a ser concluído e estreado já no século XXI, …Quando Troveja tornou-se o primeiro filme de Manuel Mozos a ser exibido comercialmente.

“Só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja”, diz o ditado. Não há trovões no filme de Manuel Mozos antes da segunda sequência, quando a personagem de Miguel Guilherme desperta sobressaltado de um pesadelo durante uma noite de trovoada. Mas há, desde os primeiros planos do filme, electricidade (a primeira cena passa-se numa barragem) – juntando as duas coisas, chegamos ao anúncio do clima do filme, borrascoso, alimentado por uma espécie de electricidade tempestuosa. Manuel Mozos falou, aquando da  estreia do filme, de “série B” a propósito de … Quando Troveja, com certeza menos por condições de produção ou porque a narrativa do filme se aproxime do tipo de narrativas e ambientes que habitualmente associamos à “sèrie B”, e mais pela enorme condensação de energia (“eléctrica”) em que o seu filme parece estar sempre a trabalhar. Repare-se como, na maior parte, as cenas são bastante curtas, mas sempre extraordinariamente tensas, concentradas, direitas ao assunto sem desvios nem floreados. Isto é uma coisa de “série B”, este despojamento e esta contracção do tempo, esta capacidade de reduzir as cenas e os planos ao seu essencial. Como o é, aliás, esta montagem que praticamente faz desaparecer os chamados “planos de ligação”, constantemente criando elipses ou meramente sugerindo a sua hipótese. E este modo narrativo tem ainda a ver, obviamente, com a “electricidade”, que o filme acumula e acumula de plano para plano, de sequência para sequência, e concentra nessa personagem central (a de Miguel Guilherme) que é como uma “pilha” cada vez mais carregada. Não exageramos, de resto, se dissermos que é esse um dos segredos do filme: trabalhar uma personagem (que está, desde o princípio, em “perda” afectiva e psicológica) até ao ponto máximo da sua suportabilidade – e depois poupar-nos a sua dissipação, em mais uma das muitas elipses de …Quando Troveja (o cúmulo do abandono e da dejecção moral, a chuva, o abraço da “duende”, um salto e, na última cena, Miguel Guilherme fresco como ainda não o víramos).

Seria, porventura, a maneira ideal (a única manei ra) de filmar um mergulho num abismo de falta de auto-estima sem ficar lá preso. Sempre em secura e em pudor, sem insistência nem complacência, muitas vezes em “ricochete”. Em …Quando Troveja a borrasca é o período de crise em que o protagonista se afunda depois de a namorada o ter trocado por um amigo dos dois. Odisseia pelas profundezas da auto-comiseração que dá uma lição a um filme horroroso (mas celebrado e “oscarizado”) como é o Leaving Las Vegas de Mike Figgis, o filme de Mozos é capaz desse mergulho sem nunca perder o pé nem uma frieza de “lâmina”: repare-se como aqui o mais frio e a “realista” é a memória, venha ela em pesadelos (logo no início) ou em relatos (o encontro, no carro, de Rute com o colega de escola).

…Quando Troveja é ainda um filme que se aventura numa dimensão “fantástica” ou meramente fantasiosa (as cenas com os “duendes” e respectivos flashbacks), multiplicando os tempos e os espaços, capaz de compor, de forma original e certeira, uma espécie de conto de fadas para adultos, onde toda a gente vive a sua forma pessoal de orfandade. Nisso, nessa constante presença de uma iminência da perda, efectiva ou apenas latente, ou fantasia- da, é um filme que sintetiza algumas das principais preocupações de Mozos, no cinema de ficção mas também na sua obra documental – pois não é outro o tema de, por todos, Ruínas.

Luís Miguel Oliveira