ROMAMOR (Lettre Filmée Berlinoise)
França | 1991 | 35mm | cor | 92’
Realizador: Joseph Morder

Sinopse
O cineasta Mark envia desde Berlim uma carta filmada a Sandra, pintora que reside em Paris. Nesse filme, Mark evoca o seu encontro com Sandra, mostra-nos por trás da objectiva da sua câmara, a sua viagem a Berlim, a viagem que ambos fizeram a Roma à procura das suas origens judaicas. Sandra é cada vez mais sufocada pelo uso obsessivo da câmara de Mark: ela gostaria de viver a sua história de amor, o seu exílio, sem o olhar constante da câmara…

 

DA PULSÃO DE FILMAR
Joseph Morder por Joseph Morder

Nascido de pais de origem polaco-judaica, Joseph Morder viveu grande parte da infância em Guayaquil, no Equador, até a sua família se ter instalado em França. Ao longo de mais de 40 anos, experimentou todos os formatos, desde o super 8 até ao 35 mm, passando pelo telemóvel, abordado todo o tipo de narrativas e géneros, em mais de 800 filmes que se confundem frequentemente com a sua própria vida.

Joseph Morder não pára de filmar. Para Alain Cavalier, ele é um filmeur, isto é, “uma pessoa que filma como outros pintam ou escrevem”. Trabalha no seu diário filmado desde os dezoito anos, um trabalho de atelier, que lhe serve para elaborar as suas ficções.

Joseph Morder envia uma carta filmada a Alain Cavalier – Lettre filmée de Joseph Morder à Alain Cavalier, 2006, 6’ – depois dum café, onde inventa um espaço para filmeurs e para non-filmeurs (como existe um espaço para fumadores e para não-fumadores) … para lhe propor que o filmasse, é claro!

Aqui, cita essa ode vibrante ao kodakchrome, por Jean Cocteau, com quem partilha o deslumbramento:

“O negativo em Kodakchrome perturba as cores do modo mais imprevisível; de certa maneira, e é bom que se admita, ele cria como um pintor quando aceita as surpresas. Estamos perante uma máquina que inventa. Aquilo que eu mostro nãO é aquilo que pretendo, mas o que a máquina e os banhos químicos desejam. É um outro mundo, no qual é indispensável esquecer-se daqueles que o habitam.”

Para quem filma há já muitos anos com kodakchrome 40 asa em super 8 – que a Kodak deixou de fabricar – essa “maravilhosa emulsão herdeira do technicolor hollywoodesco”, é natural que se pergunte o que será do mundo sem ele. “É uma cor que desaparece da nossa paleta.”

dirigindo-se a alain cavalier:

“O que me agrada entre nós, é que tendo começa- do sob os auspícios do cinema de Hollywood, você dirigiu-se para um cinema mais pessoal, enquanto eu, vindo do cinema amador, sonho encaminhar-me para o cinema profissional de Hollywood.”

Em Romamor, 1991, 92’, Mark, cineasta, envia desde Berlim uma “carta filmada” a Sandra, pin- tora que vive em Paris. Evoca o seu encontro atrás da “objectiva” e mostra o seu passeio por Berlim, cujo muro acabara de cair. Filma igualmente a sua viagem de Paris a Roma, ambos em busca das suas origens judaicas. Sandra fica cada vez mais importunada pela câmara obsessiva de Mark: ela gostaria simplesmente de viver a sua história de amor…

“Só posso ver a realidade através duma objectiva. A minha paixão, o meu trabalho, é espreitar as pessoas e roubar-lhes a alma. Desde pequeno, quero domar o mundo, encena-lo à minha maneira. A minha vida é uma sucessão de arquivos, guardo tudo.”

É com esta declaração que começa Voyage à Rouen, 1994, 26’, curta-metragem realizada por Joseph Morder três anos depois de Romamor.

Que é feito desta pulsão de filmar, que o habita em cada filme, e em especial em «Romamor»?
Aqui, o actor Cyril Charlot, no papel do realizador, tenta libertar-se dela, e numa bela manhã parte de viagem para Rouen, sem os seus habituais instrumentos, câmara, aparelho fotográfico e outros acessórios. Chegado à estação, desprotegi- do (não acabou ele de perder os pais num sonho?), pequeno pássaro (ainda que grande na estatura), deambula, despido, os braços estranhamente afas- tados do corpo, estremecendo, (o plano no portão da catedral), expondo-se para viver a vida tal como ela vai (e vem), abandonando-se pouco a pouco ao seu fluxo, sem mais o procurar reter.

Viagem iniciática, portanto. Encontro com outros, os outros, a loucura sempre dançante, coisas vistas como são e captadas apenas pelo olhar, gratuitamente, pelo prazer, que descobre.

A vida vivida, mas a memória está lá, que tudo retém.

Guardando as devidas proporções, não nos remete da gare de Rouen à de Milão e à última cena de «Teorema», de Pasolini, cujo protagonista se desembaraça das suas roupas? Numa finalidade assaz parecida: abraçar a realidade como é, sem intermediário.

E Joseph Morder confirma-o : “A personagem de Voyage à Rouen parece-se de facto comigo, mas é o oposto daquele que sou (inclusive fisicamente): não filmo sempre como ele e sobretudo não vejo a vida através da câmara (é esse também o objectivo de «Romamor»: isto é, o inverso daquilo em que não me desejo tornar e a minha grande preocupa- ção; portanto, exprimi-a na ficção). O importante para mim é viver as coisas, o que a personagem de Voyage à Rouen descobre no fim.

Uma forma de lembrar que o artista, ainda que busque os seus materiais na realidade, neste caso na sua biografia, esta, uma vez noticiada, contada, filmada, torna-se desviada, traficada, mitificada – a fábrica do mito está aí para dar sentido àquilo que não é compreensível –, uma realidade (re) criada, ficção portanto, e o jogo de vai-e-vem entre os dois.

Joseph Morder por Gérard courant

 

Le journal de Joseph M. 1999, 58m.

Convidado a mostrar a obra dum realizador de que gostasse particularmente, Joseph Morder escolheu mostrar o retrato que Gérard Courant lhe fez. Eis como justifica a sua escolha:

“Escolhi montar este filme porque penso que ele esclarece, através do género do documentário (por muito que este seja ficcional também), a ficção que é Romamor. Gérard Courant é um amigo meu e, por isso, conhece tanto a minha pessoa como o meu trabalho: o seu filme é um retrato (auto-retrato também, como é o caso de todos os grandes artistas) da minha personalidade, por intermédio do seu aspecto lúdico: esta aparente leveza serve para exprimir coisas profundas sem grandes discursos. Sempre acreditei na força do humor e do prazer do espectador: eis, quanto a mim, algumas das funções mais importantes do cinema(tógrafo). O filme de Gérard Courant reúne todos estes elementos e serve também de introdução aos seus filmes: tal como ele, gosto de filmar regularmente (os seus Cinématons constituem um imenso diário filmado da nossa época).

Projectar O Diário de Joseph M é, para mim, uma forma de prosseguir com Gérard a conversa amigável que mantemos desde há muito e de a partilhar com os espectadores.”

 

Gérard courant e os cinématons

Desde Fevereiro de 1978 que Gérard Courant rea- liza retratos filmados de diversas personalidades artísticas e culturais, os Cinématons.

Cada retrato é um grande plano, mudo, dura três minutos e trinta segundos, durante os quais a pes- soa filmada tem a liberdade de fazer o que quiser, numa única cena (prise unique). Até hoje, mais de 2 300 retratos integram esta antologia cinematográfica, que ultrapassa as 150 horas.

Barbara Spielmann