TARDE DEMAIS
Portugal | 2000 | 35mm | Cor | 96′
Realização: José Nascimento

Sinopse
Madrugada no Tejo. Um pequeno barco de pesca naufragado. Quatro homens há longas horas encharcados até aos ossos, sem saberem se alguém os virá salvar. Com Lisboa ao longe, mas ninguém à vista, e em risco de vida, eles não têm outra saída senão tentar chegar à margem por si próprios (mesmo sabendo que as suas hipóteses são muito poucas). E ao longo de 24 horas, por bancos de areia e lodo, arrastando-se pela água e a nado, num dia de Inverno gelado e negro, eles vão lutar pela vida num esforço sobre-humano, entre o desespero e a exaustão. Chegará a ajuda tarde demais?

 

TARDE DEMAIS DE JOSÉ NASCIMENTO

Quando se ouve falar pela primeira vez em “Tarde Demais” (2000), a segunda longa-metragem de José Nascimento depois do muito curioso “Repórter X” (1986), poderá pensar-se que se trata de um filme de acção, movimentado e cheio de peripécias.

Ao agarrar num caso verídico, ocorrido em 1995, do naufrágio de uma traineira no Rio Tejo, bem à vista das duas margens ali tão perto, o realizador adopta, porém, um ponto de vista de grande pudor perante a tragédia que quer recriar, para que dela se guarde memória. Agarra em quatro actores, Victor Norte, Adriano Luz, Nuno Melo e Carlos Santos, e com eles reconstitui a situação vivida pelos pescadores. Contudo, trata essa situação com grande sobriedade e acerto: um ou outro plano das margens ao longe, um ou outro plano do céu, o resto é a solidão dos personagens rodeados de água por todos os lados, dentro de água e a procurar salvação.

Dito isto, há que reconhecer que José Nascimento escolhe muito bem a escala dos planos que utiliza, por forma que permite, através de grandes planos, chegar ao mais fundo da angústia dos personagens. É por isso que a primeira parte do filme, a sós com os náufragos, não se pode descrever, tem que se ver para perceber, para sentir e entender.

Os actores, com destaque para Victor Norte, ao nível do seu melhor, a que já nos habituou, aguentam tudo, como aguentaram as condições necessariamente difíceis em que foram obrigados a trabalhar. E com eles José Nascimento consegue fazer-nos naufragar, com grande comedimento de meios, com grande sobriedade mas sem a mínima concessão ou facilidade, que o assunto, por si mesmo, de todo em todo desaconselhava. Assim percebemos como um naufrágio no Tejo se pode transformar numa tragédia portuguesa, ao acompanharmos as diferentes opções dos diferentes personagens, como eles procuram manter-se uni- dos mas acabam por, inevitavelmente, se separar, sem perderem cada um deles a sua bem definida identidade própria.

A segunda parte do filme permite distender um pouco mais a atenção, porque acompanha os esforços, encabeçados pelo filho e pela filha de dois dos náufragos, para desencadear as acções de salvamento indispensáveis.

O que convence, nessa segunda parte, é o tom comum, dir-se-ia realista sem forçar escusadamente o dramatismo da situação, resultante dos próprios acontecimentos, que o realizador lhe imprime, para o que contribuem decisivamente também os actores, nomeadamente Francisco Nascimento e Ana Moreira. As dificuldades, os absurdos obstáculos que são sucessivamente levantados por diversas autoridades, que entendem seguir à letra os regulamentos, levam a que, para dois dos pescadores, quando chegam os socorros seja “tarde demais”.

E então é a montagem paralela entre o grupo de salvamento e os náufragos que impõe o seu ritmo ao filme, conferindo-lhe condimentos de um certo “suspense” que, no entanto, por si só se percebe não interessar o cineasta, mais preocupado em mostrar como as coisas aconteceram realmente para que todos possamos perceber.

Partindo de um argumento da autoria dele próprio e de João Canijo, José Nascimento cria um filme expositivo, não demagógico nem a puxar à sentimentalidade, enxuto e escorreito, que procura e consegue estar à altura das peripécias que narra. Com ele o cineasta procura descobrir e levar-nos a entender o que realmente aconteceu.

Pode acontecer que haja espectadores que não se sintam tocados no que quer que seja pela grande generosidade deste filme. Se isso acontecer, o defeito não está no filme mas nos espectadores, já que aquele procura no limite constituir-se numa espécie de documentário impossível sobre aquilo que narra, com cada parte, cada peça no seu lugar. É que para José Nascimento não se trata de culpabilizar ninguém, como terá acontecido com o trabalho jornalístico em que se baseia, o que está em causa é mostrar como as coisas se passaram, apenas cinco anos antes: que, quem foi salvo, ou salvou-se por si ou por iniciativa de outros pescadores; que um mínimo de iniciativa exigível no momento certo teria permitido salvar, segundo todas as probabilidades, aqueles para quem foi “tarde demais”. A exposição dos factos é feita pelo filme. A nós cabe-nos, como espectadores, tirar as conclusões.

E esta é, esclareça-se, praticamente uma história do quotidiano português, feito de hesitações, de dúvidas, de passar da responsabilidade para outros, de esgrimir de regulamentos, que nos torna a todos vítimas ou culpados potenciais de um qualquer naufrágio, e não só em água. Nessa justa medida, “Tarde Demais” é uma metáfora do país.

José Nascimento, esse, pelo que se conclui do seu filme chegou a tempo: a tempo de fazer um filme de grande sobriedade e grande rigor, em que, com base em meios estritamente fílmicos, nos mostra de que é feito o “inevitável” com que somos confrontados todos os dias. E fá-lo de forma perfeitamente credível e esteticamente convincente. Já agora, deseja-se que continue com o mesmo sentido do fílmico e do humano que mostra neste filme, em que tudo, até a música, escassa mas judiciosamente escolhida e distribuída, está no lugar certo.

Carlos Melo Ferreira, Outubro de 2011