TVA MÃNNISKOR (DOIS SERES)
Suécia | 1944| 35mm | P&B | 74’
Realização: Carl Theodor Dreyer
Cópia: da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema
em 16mm, versão original, legendada em francês e sueco, 810mts., 74’, janela de projeção 1:1,37, 2 bobines (projeção com legendas eletrónicas em português)

Sinopse
Ame Lundell é acusado de ter plagiado a tese de um seu colega, Sander, que acaba de aparecer morto. Ame descobre entretanto que a sua mulher fora amante de Sander e que este a chantageara conseguindo as notas de trabalho de Ame. Para salvar a mulher, tornada suspeita da autoria do crime da morte dele, Ame confessa ele próprio o crime à es- pera que ela fuja para o estrangeiro. Ela recusa e suicida‐se. Ele suicida‐se em seguida.

 

Två människor, C.T.D., 1945

Setembro de 1965. Os Cahiers du Cinéma publicam uma entrevista a Carl Theodor Dreyer por Michel Delahaye, quase um ano depois da estreia parisiense (e mundial) de Gertrud, filme que tinha sido totalmente arrasado tanto pela crítica e imprensa francesa como dinamarquesa.

Este crítico dos Cahiers, um “dreyeriano” indefectível, fala longamente com o cineasta que se exprime em francês. Passam em revista toda a sua filmografia, tão diversa e contrastante, que atravessa a história do cinema, marcando de alguma forma cada um dos seus momentos mais importantes. Quer se trate de Mikaël ou de Vampyr, da Quatrième alliance de dame Marguerite, de Ordet ou de Ils attrapèrent le bac, Dreyer demonstrou não só uma extraordinária elasticidade e invenção sem falha, ou quase, face aos desafios formais (e não formalistas) de cada época, mas também com um vivo sentido de conclusão. Ou seja: os seus filmes recolhem-se em si mesmos, como a maré depois de derramar sobre a praia os tesouros heteróclitos da natureza humana.

Quando Michel Delahaye aborda a questão de Två människor (Dois Seres), rodado entre Dies Irae et Ordet, terminado em 1945, Dreyer atalha imediatamente: «Esse filme não existe.» «Existe, sim” – insiste Delahaye – “eu vi esse filme”. “Posso por isso dar o meu ponto de vista: ele existe». Dreyer concorda em falar um pouco mais: «Sabe, eu fiquei, quando me envolvi nesse filme, numa situação precária. Estávamos em 1944. Disseram-me que a minha vida podia estar em perigo, por causa dos Alemães. Fui para Estocolmo, com Jour de colère, oficialmente com a missão de vender o filme. Fiquei então em Estocolmo, e quis realizar esse filmezinho. Infelizmente o produtor decidiu escolher ele próprio os actores. Ele queria actores com grande carreira. Mas os actores em questão representavam exatamente o oposto do que eu desejava. E para mim os actores são extremamente importantes. Então eu queria que a mulher fosse um pouco teatral, um pouco histérica, e relativamente ao actor que devia encarnar o cientista, queria um homem de olhos azuis, ingénuo mas honesto, e interessado apenas no seu trabalho. Bom, deram-me uma actriz que era o arquétipo da pequeno burguesa, e, como homem, em vez do idealista de olhos azuis, recebi um diabólico intrigante, com olhos…” (Cahiers du cinéma, n° 170, septembre 1965).

Como Michel Delahaye repetimos: esse filme existe. Acrescentamos ainda: não só existe, como é um dos mais enigmáticos do autor de Passion de Jeanne d’Arc. E acrescentamos por fim: se acreditamos em tudo o que dizem os cineastas sobre os seus próprios filmes, então consideraríamos com John Ford que The Fugitive é a sua maior obra. Algumas palavras sobre este enigma.

Adaptado duma peça Willy Oskar Somins, Attentat, representada em 1934, o filme é um melodrama policial, que conta a história de Arne Lundell, um jovem e brilhante cientista acusado de plágio pelo seu chefe e mentor, o professor Sander, cedo assassinado. Mas o comportamento de Marianne, a esposa impetuosa e fantasiosa de Arne, faz nascer a suspeita fatal, que, por um sistema subtil de passagem de testemunho, vai incriminando ora um, ora outro. Dies Irae?

É preciso fazer justiça a Dreyer: o estilo dos actores não tem de facto nenhuma ligação com o que o cineasta procurava, mas é esse desfasamento que produz a torção impressionante de todos os elementos em jogo e que garante a irredutibilidade do filme a qualquer forma de classificação. Além disso, é impossível apanhar Dreyer em flagrante delito de indiferença; pelo contrário, raramente terá sido tão rigoroso na sua “mise en scène”: a escolha de um espaço fechado dá-lhe a possibilidade de alterar incessantemente as relações entre os planos, de combinar movimentos, gestos, silêncio e palavra, num jogo constante de rupturas rítmicas, e de construir gradualmente um espaço asfixiante onde os dois amantes vão acabar por encontrar a única saída possível para libertar a sua angústia e a nossa.

Um mundo, implacável, vai intrometer-se entre eles e a sua felicidade. O burburinho da rua, a gritaria dos transeuntes, as sirenes da polícia, tudo se mistura num pesadelo vigilante. A cidade, plena de vida e ameaça, fecha-se sobre eles como uma flor carnívora. Numa curiosa mistura de Naruse (pelo corte), de Hitchcock (pela permanente suspeita, a culpa kafkiana) e de Grémillon (pela invenção sonora), “Dois Seres” brilha suavemente como uma chama discreta, que talvez proteja estes “Tristão e Isolda” da desolação eterna.

Pierre Léon, Fevereiro de 2014