UCCELLACCI e UCCELLINI
Itália, 1966, 35mm, P&B, 84’
Realizador: Pier Paolo Pasolini

Sinopse
O agricultor Totò e o seu filho Ninetto iniciam uma viagem em volta de Roma. Durante o caminho, conversam sobre a vida e morte com uma personagem insólita, um corvo, que lhes diz ser um intelectual marxista da velha guarda, sustentando a teoria de que a humanidade se divide em duas parcelas: a dos “passarinhos” e a dos “passarões”…

 

UM FILME PURO

Jamais tinha lançado um filme tão vulnerável, tão delicado e ao mesmo tempo tão reservado como «Uccellacci e Uccellini»›. Não só não se parece com os meus filmes anteriores, como mesmo não se assemelha a nenhum outro filme.

Não me refiro à sua originalidade – seria uma torpe presunção de minha parte – mas antes à sua fórmula, que é, a de uma fábula, com seu sentido oculto. Um conto que, como todos os outros, consiste numa série de provas que os protagonistas devem sortear. Os meus protagonistas, neste caso, em nenhum momento parecem receber recompensa alguma depois de as haver enfrenta- do: nem reino, nem princesa. O que unicamente lhes resta é a possibilidade de enfrentar novas provas. Nenhuma fábula propriamente dita havia terminado desta maneira! Ainda por cima, no que toca ao meio e às figuras, é aqui neste caso um conto picaresco: as experiências «ao nível da rua» de dois pobres diabos.

Mas o processo resulta em si mesmo uma ideologia. E pelo contrário, a minha ‘fábula encontra a sua ideologia fora do picaresco e precisamente em algo que contraria profundamente toda a poética picaresca. Dois bons motivos de decepção: a fábula que termina como não devia terminar, o picaresco que não diz o que deve dizer.

Porém:

É necessário enganar. Saltar sempre sobre… A brasa, como mártires ridículos sobre o braseiro… dizia eu num poema intitulado precisamente «Projecto de obras futuras» Pietro Bianchi disse na sua crítica ao meu livro «Uccellacci e Uccellini›› – sem dúvida confundido pela bonomia dos textos e do material fotográfico – de um apaziguamento interior do autor: um vento impetuoso da minha juventude. Talvez o vento tenha deixado de soprar, mas o que o suplanta não é certamente a calma. Nunca me tinha exposto, nem corrido tantos riscos, como neste filme (…). Entre tantas dificuldades, tive como recompensa a felicidade de dirigir Tótó e Minetto: um Stradivarius e um agudo pífaro – grandes solistas!

Por conseguinte – se não me posso incluir imprudentemente ao lado dos críticos e dos amigos que consideram este filme como o melhor que realizei – creio, com maior orgulho todavia, poder dizer que «Uccellaci e Uccellini» é um filme puro.

Pier Paolo Pasolini – “Um filme puro” in Celuloide, 110 / Fev / 1967. – 7

[Declarações de Pasolini sobre o seu filme]

 

UCCELLACCI e UCCELLINI / 1966

“…Uccellacci e Uccellini (literalmente “Passarinhos e Passarões”) é um dos mais crípticos e mais importantes filmes de Pasolini, ou como ele próprio o disse, “o meu filme mais vulnerável, mais delicado e mais secreto”.

Pasolini também disse que pensou numa obra mozartiana, concebida e executada como a Ária do Perdão da Flauta Mágica, mas que, “devido a um estado de alma profundamente melancólico” acabou por adquirir uma “terrível amargura”. Não é por isso que a obra perde o seu sentido mozartiano mas, sem dúvida, o tom não é o da harmonia final que caracterizava a Flauta Mágica. Se a comparação tem razão de ser, evocaremos sobretudo obras do compositor de períodos bem mais negros.

E a comparação tem razão de ser (e não falo obviamente devido a alguns temas musicais evocados). Como nalgumas peças mais sombrias de Mozart, entramos neste filme sob o signo duma aparente alegria e duma aparente frescura, com esse genérico cantado, porventura o único exemplo dum tal genérico na história do cinema. Depois, na parte inicial, antes da aparição do corvo, Pasolini procede a uma espécie de “private jokes” com os fantasmas do neo-realismo ou com o realismo felliniano, com “divertimentos vários” (a citação de Mao, os palhaços, o homem no bar, os meninos- anjinhos, os nomes das ruas). Mas a longa viagem de Totó e Ninetto vai adquirir um outro peso, quando aparece o inesperado companheiro, o corvo que fala. As estradas separam-se e “o filho da dúvida e da consciência” (que mais tarde se auto-define como “intelectual de esquerda” em que Pasolini se auto-retrata com terrível ferocidade) só consegue ser ouvido quando muda os personagens de décor e encena esse prodigioso “filme dentro do filme” que é o episódio franciscano.

Naquele tempo, e com aquele S. Francisco marxista, é-lhe ainda possível dar uma moral à fábula e pregar a conciliação de falcões e pardais. Regressando a este (tempo), o corvo só pode servir (numa premonição de Porcile e de Saló) como objecto de sacrifício, comido pelos seus companheiros, ficando a câmara sobre os seus restos. Disse-nos antes que “não choro o fim das minhas ideias, porque alguém virá certamente pegar na minha bandeira e erguê-la. Choro-me a mim mesmo”. Mas é exactamente essa distinção (entre as ideias e quem acredita nelas) que é terrivelmente posta em causa ao longo do filme e temos algumas razões para duvidar que o corvo (e Pasolini) tivessem uma tal certeza de que a sua mensagem seria retomada.

Sobre o caixão de Togliatti, Pasolini parece, neste filme, interrogar-se sobre tudo e não apenas sobre
o seu testemunho, ou a sua obra. O segredo de Ninetto a Toto é uma metáfora demasiado inquietante, como o é o episódio de Luna, e aquele campo, sobrevoado por um avião que eventualmente pode descender de uma famosa sequência de Hitchcock. A progressão deste filme é uma progressão que vai da confiança ao absurdo, com uma precisão seca.

E igualmente uma progressão que inicialmente nos dá as chaves, para depois no-las retirar todas e nos deixar, ao contrário de todas as fábulas, sem qualquer moral. A não ser a dos dentistas dantescos ou a daquela viagem sem fim, onde o corvo e as suas histórias (ou o Corvo e a História) não foram mais do que um efémero episódio. E o animal nem sequer era simpático e tinha um pendor moralizante assaz insuportável. Não choramos muito nem a sua carne nem os seus ossos. Para que serviu? Esta terrível questão talvez explique o lado terrível desta fábula, mau grado ou por causa da sua aparência desenvolta e ligeira.”

João Bénard da Costa in “Folha da Cinemateca”, de 23 de Julho de 2008 [excerto]