UMA PEDRA NO BOLSO
Portugal | 1987 | 16mm | Cor | 92
Realizador: Joaquim Pinto

Sinopse: O primeiro filme de Pinto conta uma história de iniciação e embate com a idade adulta: em férias na estalagem de uma tia à beira mar, Miguel encontra Luísa, o pescador João e o Dr. Fernando, três personagens que marcarão a entrada da sua primeira pedra no bolso. Foi filmado sem subsídios e uma reduzida equipa, uma exceção no cinema português nos anos oitenta. “Quando Joaquim Pinto apresentou em ante-estreia o seu filme na Cinemateca disse (ou escreveu) que ‘Não vale a pena filmar se não se tiver motivos para isso’. Os motivos de UMA PEDRA NO BOLSO são óbvios e começa aí a sinceridade tocante desta obra” (M.S. Fonseca). (fonte: Cinemateca Portuguesa)

 

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UMA PEDRA NO BOLSO

Uma Pedra no Bolso – título do filme de Joaquim Pinto que retivemos para estes Encontros de Cinema do Fundão – é um filme inicial. Inicial, sendo o primeiro filme de Joaquim Pinto (enquanto realizador, pois, desde o princípio dos anos 80 já tinham sido muitos os títulos que assinou como engenheiro de som e, depois, como produtor). Inicial, também, porque é um filme que encerra em si características e estímulos que se irão verificar nos filmes seguintes, até ao mais recente e belíssimo: “E Agora? Lembra- me”. E inicial, ainda, porque é um filme, sob o tema da adolescência, idade de iniciação e de despertar e de desejo e de desilusão.

O filme começa com a imagem de dois rapazes que andam à pesca nas rochas. “O meu nome é Miguel…” diz uma voz off de rapaz (lembram-se da voz do “E agora?”: “o meu nome é Joaquim Pinto…”) e conta-nos que foi por causa da matemática que decidiram mandá-lo, nas férias de Verão, para uma tia, dona duma hospedagem, na esperança de que “os dias sempre iguais” o fizessem virar-se mais para os mistérios da matemática. Os mistérios do filme, se os tem, não são certamente os mistérios da Matemática.

Com Miguel – chegado de camioneta, saco ao ombro e rádio na mão (o Joaquim e o Nuno levam sempre música com eles para todo o lado) – vamos entrando, num espaço de poeira e silêncio, caminhos preguiçosos onde ovelhas passam. Vai-se desenhando uma distância triste. “Já cheira a mar”, diz a voz off, depois da curva do caminho (cheiro a mar que vai pelo filme dentro, no sussurrar das marés e da noite). Uma quietude sobre os terraços da hospedagem encavalitada nas rochas, na orla do mar, como o esqueleto de um navio abandonado, o branco das paredes a descascar.

Antes de descer a escadaria, em zigue-zagues pela falésia abaixo, Miguel vê chegar a barca que traz João, e neste chegar, cheio de brilhos do mar e sol, já alguma coisa se prenuncia.

Entramos com Miguel na hospedagem da tia, espaço de sombra, onde o futuro não parece querer entrar, onde nada está para acontecer e o tédio se cola às paredes. É então que aparece a rapariga com o lanche – tão fora deste mundo, as saias encarnadas, o ar tão bonito. Depois vêm nas manhãs os ‘despertar do menino’ pela rapariga, Luísa, o abrir das janelas, a luz do dia a espalhar-se na almofada, as ordens da tia, o corpo tenro demais para o crescer – as noites de insónia escura e a descoberta de fugas de dupla traição de João e de Luísa. A tia não gosta nada de ver João por perto, manda Miguel estudar! mas só há rapariga e lençóis brancos estendidos ao sol dos terraços, pescarias na barca do João e conversas de rapazes, o esventar do peixe! O descapotável branco, do antigo hóspede (Luís Miguel Cintra, tão presente nos filmes de Joaquim Pinto) que volta em busca “do encontro com o amor passado”; o cigarro ao volante do MG e a mão que inventa uma carícia no banco vazio do carro, a revolta sem explicação e crescente em Miguel, a luta dos rapazes. O espiar nos caminhos – exclusão de cada um do mundo dos outros – Miguel, no alto da falésia segue João e o hóspede que vão juntos à conversa, Luísa fica a ver, do terraço, João, Miguel e o hóspede que vão para um arraial à noite; Isabel de Castro (a tia) naquele estranho plano a olhar para o mar com um muro meio caído: “eu não tive adolescência”, dissera na chegada a Miguel.

O que há no cinema de Joaquim Pinto, é esta espécie de desenrolar passivo que vem sempre delicado, com minucioso cuidado de descoberta, como se cada plano, cada cena, cada personagem se encostasse ao outro, e ao mesmo tempo há uma sofreguidão pela vida e pelo entendimento dela, como se abrisse um brinquedo para o perceber por dentro – a ventoinha quebrada: “também leva escovas, essa coisa?” De facto, desde este primeiro filme, Joaquim Pinto mostrou uma relação pessoalíssima na sua maneira de fazer cinema. Nunca no cinema português, o trabalho com os actores foi tão tangente à vida, retirado dos afectos, da vida em si, dentro de relações de amizade, de família. Neste filme, por exemplo, não é por acaso que o antigo hóspede da estalagem se chama Fernando, o nome foi emprestado a um tio de Joaquim Pinto, que lhe lembrava o personagem do A Single Man do Christopher Isherwood, conto que esteve na origem do filme, mas depois soube-se que tinha sido feita uma adaptação, por Tom Ford, e já não foi possível comprar os direitos. O Cinema de Joaquim Pinto está carregado de exemplos deste género que acabam, sem se perceber bem como, por lhe conferir veracidade. Tudo se liga à vida. Se nada disto é novidade no cinema (penso em Rohmer, Ozu, Nicholas Ray, e podia seguir-se uma longa lista) com Joaquim Pinto o mistério é precisamente o não pôr mistério em nada e tudo escorre di- rectamente, como água que corre, para um campo aberto: há realmente luz! Simples luz. A aparente simplicidade – que o não é! – vem desse abstracto que é representar a vida como se representar não o fosse. Ao contrário do que acontece na maior parte das vezes quando se tem a pretensão de fazer ‘natural’, quando nos querem impingir uma coisa com ‘certa naturalidade’ e se cai sempre na pior das banalidades – no caso de Joaquim Pinto (e quando digo Joaquim Pinto penso sempre: Joaquim Pinto, Nuno Leonel), há uma exclusão total de banalidade, nada há de vulgar nesta aparente simplicidade. E quem os conhece verifica o esta- do de constante deslumbramento por tudo o que os rodeia, sempre em relação com um todo, sempre em relação ao universo.

Penso que o ‘cinema português’ estava há muito tempo à espera disto, só que não teve a lucidez de o reconhecer totalmente quando chegou. Talvez porque Joaquim Pinto só nos diz a verdade, mas não toda. Uma pedra no bolso… a que virá este título? É essa a beleza dos seus filmes. Diálogos, narrativas ou citações entrelaçam-se, formam uma linguagem viva que convive com imagens e sons que se colam a nós com uma autenticidade que chega a espantar e uma intimidade que chega a ser desarmante. O abraço de Luísa e Miguel, tão despedida e tão desejada chegada: “Estava há tanto tempo à espera disto. Pensei que devia fazer qualquer coisa e não sei bem o quê. Só me lembro das mãos dela frias no pescoço e do cheiro a fritos da cozinha”.

Volto assim ao filme. E vou ao fim do filme, pois se me detive na descrição do princípio do filme foi por ver que neste final – quando Miguel se despede da Ponte das Barcas – tudo se fecha circularmente sobre si. Entra a desilusão e fica a pergunta para a qual não se quer ter resposta: “Porque é que a Luísa confessou um roubo que não fez? Para salvar o João? Mas, porquê?” O vento e fim de Verão. Num movimento inverso: de novo um plano da escadaria, semelhante ao que se vê no início. Miguel agora sobe (mais parece que vai em descida); de novo o terraço visto do alto da arriba, como o descobrimos no início; a tia lá muito em baixo, entra em casa; a barca do João, na distância, leva um novo companheiro.

Só que entre o primeiro plano e este, tudo mudou, nesse tempo de um Verão de despedidas, de começos, e desenganos. Traições. A prova do furto! afinal tinha sido ele o culpado: Ele, o João! “E a Luísa que tinha sido despedida injustamente?” Fica o vento forte, o João de camisa aos quadrados pretos e encarnados como antes e Miguel, já longe, volta-se uma última vez. Em baixo, como no início, andam dois rapazes à pesca nos buracos das rochas. O vento, a camisa, viragem. E fica para sempre aquela noite em que Luísa puxou Miguel, para o ensinar a dançar: “Não tens jeito mesmo nenhum. Ouve a música! Ai! Tens uns pés tão grandes. Vá! Vá lá, tu és capaz!”

Rita Azevedo Gomes Praia do Guincho, 26 de Março de 2016

 

UMA PEDRA NO BOLSO

Ai que saudades de certos verões longínquos. Que saudades sem saudades daquelas camionetas cor-de-laranja da rodoviária nacional. Que saudades de deixar a cidade, ir por ali fora, sentir o cheiro do mar ao longe tão longe, descalçar-me a areia, nos pés sentir. Tomar os pequenos almoços com o apetite aberto pela maresia. Aquele pão…O banho matinal, umas corridas, pescarias e a fome de novo. Que saudades do entardecer também laranja ou para os amarelos. As saídas nocturnas para carrocéis de feiras ou para o café da esquina. As meninas que nos faziam sentir algo que jamais tínhamos sentido. Primeiros cigarros tais frutos proibidos? Perder-me pela inocência. Posso estar a falar de mim, vou parar de falar de mim.

Joaquim Pinto é para todos ou quase todos o grande técnico de som dos filmes de João César Monteiro e não só, ou um montador. Mas um técnico em todo o caso, mesmo que com a veia ar- tesanal que também a Vasco Pimentel lhe é reconhecida. Escandalosa omissão. Tenho que o dizer de forma categórica: bastava a candura, a lancinante poética da humildade e da pobreza e da beleza e da plenitude e da carência, da infância em suma, para “Uma Pedra no Bolso” ser um dos mais belos e mais esquecidos filmes de todo o cinema português. Tão belo como os mais belos filmes iniciais de Pedro Costa ou Teresa Villaverde. Tão esquecido como os tão esquecidos e bonitos e singularíssimos filmes de Manuel Mozos. As primeiras vezes de cineastas a rimarem com as primeiras vezes dos protagonistas que atravessam os filmes.

“Uma Pedra no Bolso” é igual a “Moonfleet”, é um filme visto e conduzido e descoberto/ redescoberto pelos olhos e coração de uma criança. “Uma Pedra no Bolso” é o filme das pequenas coisas – Mozos, outra vez – onde uma criança vai então chegar à beira mar, tomar os pequenos almoços, os almoços, os jantares ou ceias referidas. Vai-nos falar só a nós – e num tempo em que a nostalgia é ainda coisa dúbia – de momentos em que a doçura e a fúria só podem fazer raccord com o pequeno festival punk-rock do velho rádio com as velhas cassetes. Vai perder-se de amores por uma mais velha mas não muito. Vai então sentir aquele aperto que quem nunca sentiu não é deste mundo ou aqui não anda a fazer nada. Como dor de barriga mas mais terna… Vai sentir que às vezes não há nada nadinha a ponta de um corno para fazer e que tal parece chato…Vai-se meter numa máquina e imaginar-se piloto ou sedutor. Se calhar um dia mais tarde terá um brinquedo assim, se calhar nunca o terá. Sabe-se lá.

Vai mentir e vão-lhe mentir e vai percorrer trajectos linhas rectas e curvas. Vai saber que nos adultos, a parte quase absolutamente toda, cada um tem as suas razões e quer é ficar bem na vida à custa do que quer que seja, e os outros que se lixem. Vai conhecer a excepção milagrosa como que em espectro – Luís Miguel Cintra desta vida – ou ainda aquele tipo mais velho que não sabemos se havemos de confiar nele ou rapidamente mandá-lo às favas. Pela frente dizer sim num momento à autoridade da família que dele está responsável, mas por um bem maior e pelo respeito ao sangue fazer a coisa contrária no entretanto seguinte. Vai mergulhar e caçar peixes, apanhar sol e consertar uma ventoinha. Vai andar de boleia. Coisas simples, coisas pequenas. Vai, ousadia das ousadias a minha ousadia favorita, entrar no quarto da menina um pouco mais velha e bela como as mais belas coisas daquelas paisagens, ver e sentir o que pode e de lá fugir a sete pés. Não vai fazer os trabalhos de casa e vai imaginar que os faz. Vai dançar ou tentar dançar e agarrar ou tentar agarrar a menina. Vai conseguir, hum- mmm. Vai por ela uma arma usar e tudo deixar que o confunda.

Tanta descrição e tanta palavra e no entanto o filme só faz a plenitude do seu sentido quando visto. Quando experienciado nestas peles que naquelas sensações já se arrepiaram já se deslumbraram já cheiraram. É possível sentir o cheiro e a temperatura do filme de Joaquim Pinto. Obra solar e obra olfactiva sensorial. Falta a mais bela cena que é uma das mais belas cenas do cinema deste país ou de todo o cinema, sem receios: a cena da romaria ou da feira popular ou dos carrocéis. Tão simples, tão deslumbrante e luminosa e escura como as cenas de floresta de “O Sangue”. Uma montanha russa, os três que se aventuraram lá no meio, uma câmara na sua fixidez abalável a enquadrar os rostos extasiados e as luzes e aquele medo tão bom e o resto que por acaso entre no enquadramento, a verdade e o despertar que o directo do som proporciona.

As agruras da vida já nas voltas e nas contra-voltas desse outro tão apelativo brinquedo, as que se estão a passar ou as que se passarão mais tarde muito tarde quando o tempo passar mais rápido muito mais rápido.

Mas também puríssimo momento de libertação. Filme de tempo. É preciso ver esta cena para se saber do que falo.

“Uma Pedra no Bolso” está tocado e atravessado pelo génio do amadorismo e do artesanato e da delicadeza. A cena da tentativa de fazer a barba e aquele grão na imagem que jamais o profissionalismo industrial de hoje ousaria ter. Aquelas alvoradas, azulados que só pela memória assim pintadas se fazem. Essa extrema e bem dita fragilidade de toda uma construção de planos e dos seus sons que se volve força e coisa sem par, o que está em plena harmonia com os trajectos e as dúvidas e toda aquela abstracção temporal que certo dia e a uma certa distância, lá para a frente na vida, nos fará sorrir, nos fará sentir o tal aperto do que não volta e que saudades ou então não…Ele – o Miguel – que dali daquele tempo se quer transportar ou saltar e nós ou eu que se calhar até não me importava de lá dar um pulo. Sublime, e repito sublime, dialéctica suave de um tempo vivido e de um tempo perdido.

Antes dos “Can Movies Think?” os filmes podiam ser só isto, tipo um puto e uma praia, um amigo que nem sabe se o é, a protectora que diz que só quer para ele o bem, a rapariga que toda a beleza lhe mostra e que até a beleza do que está lá fora faz esquecer. Tão brancos, tão amarelos azuis laranjas. Antes podia ser assim. Agora a música é outra.

Joaquim Pinto, obrigado.

José Oliveira