XAVIER
Portugal | 1991 – 2002 | 35 mm | Cor | 91’
Realização: Manuel Mozos

Sinopse
Xavier entra na idade adulta. Em criança tinha sido entregue pela mãe num orfanato onde passou a infância aos cuidados da freira Irmã Maria da Luz e com a amizade de Hipólito. Na adolescência foi adoptado pelos Alves, um casal burguês, com uma filha, Luísa, um pouco mais nova que Xavier. Os Alves impediram-lhe qualquer contacto com a mãe, mas proporcionaram-lhe uma vida condigna. Até que a rebeldia própria da idade e um grave percalço fiz- eram com que Xavier se afastasse, indo cumprir o serviço militar algures, num local distante de Lisboa.
Agora a tropa terminou e regressa à capital. Vamos seguir-lhe os passos. Os seus gestos, os seus movimentos, os seus olhares, os seus tremores, os seus temores, os seus sentimentos. Através dele e daqueles com que a sua Vida se cruza.

 

XAVIER: RESGATE DO FILME ESCONDIDO

Toda a gente sabe e tanta gente se esquece de como o cinema é uma arma de resistência. Em Xavier, Mozos faz por relembrar para que mais altos propósitos pode servir a linguagem cinema- tográfica. Xavier é, na mais ampla possibilidade da palavra, um filme de sobrevivência. Sobreviveu depois de uma luta de doze anos para existir, e sobrevive hoje, para lá do tempo que espelha. Apesar do enquadramento nas circunstâncias que se sabem, como as obras importantes, traz ainda o que interessa, o que faz falta. E vale-nos vinte anos depois, ainda a saber a novo. Traz o grito da fúria de uma primeira obra, onde persiste, transparente, o amor profundo ao cinema. A energia de um fôlego de verdade que atinge o sublime, a partir de uma construção que denuncia a própria edificação artesanal e que prossegue, na glória desta simplicidade, o rumo particular de um desventurado. O pequeno grande ponto de partida. O relato honesto, importante em preservar a verdade a todo o custo. Um murro no estômago, directo ao abrir dos olhos. Xavier é uma obra prima. Perante a raridade desta certeza, quaisquer palavras que lhe possa acrescentar serão inúteis. Não tenho dúvidas de que Xavier é o filme português que mais precisa de ser visto.

Da circularidade. São combates do singular para o plural, do homem contra a estrutura. A deambulação de um rapaz sobre a Lisboa de todos os encontros, feita pequeno palco dos rostos que se reconhecem mas onde a fortuna se joga a sós. Nas regras de uma ordem desconhecida, que sucessivamente escapa às aplicações da vontade, a insistência sobrevive à adversidade. A personifica- ção da coragem anónima é o elogio do mais nobre personagem esculpido pela ficção, no cinema português. Uma interpretação eterna, sem sombra de dúvida, no ponto-auge da carreira de Pedro Hestnes. Xavier, título de um filme só. Retrato de um rapaz só na cruzada das circunstâncias. Filme de um só homem, Manuel Mozos, na melhor das essências em que uma solidão se equivale a maioridade, desvinculação e autonomia de ideais. Um filme isolado da crítica, esquecido pelos circuitos de distribuição e de divulgação, e ausente a edição comercial no mercado actual. E é sem pedestais nem focos, nem ladainhas críticas nem sustentáculos de assinatura renomeada, que hoje o filme se argumenta por si, jovem e necessário, vital como será sempre. Um dos maiores crimes do cinema português é que, passados quase vinte anos sobre o lançamento do filme, Xavier ainda não tenha conhecido uma edição em DVD.

A vida como ela é. Em qualquer tempo e em qualquer lugar, pessoas e histórias são sinónimos e Mozos sabe-o. A persistência clássica de um gosto narrativo, preserva um enredo através das ligações pessoais, pronto a relembrar que a vida começa por se fazer das e com as pessoas. Assim, na rapidez que sucede os vários momentos, não se vêem planos sem gente, para o enfeite, para admirar, para contemplar. Afinal, entre os dias deste sufoco, talvez a meditação seja a primeira elipse necessária. Para se ir suportando…

Algures pela realidade, a redistribuição dos sonhos. Como descrever um ser humano a partir de uma situação temporal? Como reflectir a personalidade atrás dos contornos que observam o seu reflexo no espelho? Se uma mente é incapaz de se abstrair das memórias, e se o alento de cada dia levanta da cama o corpo para o destinar a ir viver segundo o segredo das aspirações pessoais, em maior ou menor grau acertadas num compromisso próprio … para lá das induções objectivas da superfície aparente, das cores e das formas, do cheiro e da voz, como é possível saber quem se é? É-se da vida que se tem ou da vida que se gostava de ter? Rosa é dos vestidos que usa ou dos vestidos que gostava de usar? A realidade deste encontro de aniversário faz-se da presença efec- tiva de quem está (Xavier), ou da força obsessiva de um pensamento alheio por quem está ausente (Hipólito) e tanto se desejava que estivesse….?

A realidade dos fenómenos irrompe desejo adentro, para ser dos sítios infinitamente secretos do pensamento… Com uma sublime perspicácia, Xavier soube estender-se sobre estes retalhos informes, públicos e privados, em que se dilui uma concepção de real. Engenhosamente se apropria do cruzamento dos planos do incessante desejo e da memória insuperável, com a franqueza da insatisfação constante que define o tempo presente e dita a norma que alimenta o dia-a-dia comum. É assim que aprecia a realidade totalizante, dessa absoluta pureza em que se revelam aqueles dois personagens, Xavier e Rosa, que simplesmente partilham o conforto das aspirações banais (ter um trabalho, ter algum dinheiro, estar com alguém, receber flores pelos anos, jantar fora de vez em quando…), desejando, cada qual, uma outra pessoa. E é sem o fulgor do estado da paixão, sem a expectativa de um sonho em espera, que se dão estes corpos à necessidade. Na lógica dos mecanismos de substituição em que se habituou a evolução humana, dá-se um feminino à pertença de um masculino; animam-se as solidões respectivas no enlace amigável que não se antecipou com miragem amorosa. A escuridão de um quarto ilude a identidade dos factos. Mas a escuridão da sala de cinema, a esta etapa, está tudo menos iludida. Há uma tristeza profunda capaz de fazer soluçar o romantismo treinado pelos finais felizes de toda uma história de cinema, nessa cena em que a tranquilidade dos olhos fechados de Rosa abraça naturalmente o corpo nu de um Xavier enfastiado. E este, em todo o seu incómodo, ali se deixa estar. Relembramos o desembaraço cru das emoções em Cassavetes, com a verdade a parecer-nos tão cruel quanto fidedigna. E apesar de se antever o avanço nos degraus que alicerçam na personalidade essa espécie de construção que é o estado adulto (ou seja, a progressão na destruição do sonho pela certificação física dos estados do corpo…), não deixa de nos fazer sofrer a perda derradeira da fé no triunfo do amor…

A fúria e a elipse. Recordamos juntos a tempestade daquele plano prestes a explodir: O ritmo de uma câmara em travelling acentua, pela dupla adição, o movimento daqueles dois jovens (Pedro Hestnes e Sandra Faleiro) que de repente se encontram, e caminham e já brincam e lutam e logo gracejam e depois dançam…. E é rindo que, olhos nos olhos, na sintonia fugaz de uns segundos de romance, repentinamente cessam as dedicações. Luísa afasta-se, atravessa a relva do parque sob a noite. O caminho para casa. E Xavier de novo, outra vez, para sempre, sozinho. Prolongam-se os passos na falta de rumo. Foi um espasmo de raça Carax em jardim lisboeta o que ali aconteceu. Fantasias para os fantasiosos! O espectáculo dos corpos vivos, gesticulados pela energia! Juvenilidade à flor da pele, doce devaneio! A lava dos desejos por consumar! Todas as palavras às bocas da confissão na hora de prazer dos deslumbra- dos! E a realidade da timidez que se contem nos gestos e nas palavras… Em toda a subsistência da sua beleza clássica, é exactamente nas faltas à concretização heróica que Xavier é tão maravilho- so em fugir aos exemplos desse “star system” de um dia… A eloquência do ritmo é da mestria que estuda a elipse com uma precisão imbatível. Não existe outra obra, no cinema português, que ouse tão expressivamente a montagem como Mozos aqui soube fazer. A brutalidade do corte é o sublinhado da crueldade do ambiente que se prolonga. O negro progride. A solidão sucede-se entre as noites e os dias. O sufoco de um tempo irreparável desenha-se continuamente nas pequenas e nas grandes mortes. “Eu sei que tudo ser em vão em triste, como é triste um homem morrer….”, canta um outro Manuel, o Cruz, a entoar o mais geral que se aprende desta vida e que tão particular- mente se pode aplicar ao tanto que se cresce em duas horas com Xavier… Há um certificado de realidade que nasce da escuridão que conduz o filme. O pessimismo só se suplanta pela força incrível em que persiste o protagonista. Contínua prova de resistência física (subir aos telhados para montar as antenas, dormir no cubículo abrasador das bombas de gasolina…) que, sem garantias, navega ao sabor amargo dos dias, entre pequenos feitos que desembocam irredutivelmente em fracassos. E é no ritmo impreciso desta constância sem justiça que se acerta a cronologia da rotina previsível. E há uma beleza distinta que cresce deste género desafinado. Melodia incomum, onde o esforço dos pequenos ganhos nem tem tempo para entoar a celebração: é imediatamente derrubado pela ordem obscura do destino. (Quando se arranjou finalmente a cama para a mãe ir viver lá para casa, ela suicidou-se…) Afinal, morre-se com o que sempre se teve. Isso quer dizer que se morre só.

Em ruas sem deus, apuram-se as ideias. Todas as acções são consequentes e os pés na terra encaminham-se pela consciência que escolhem; é o que Mozos ilustra ao realizar um filme onde ninguém está imune aos imprevistos da vida mas também não atravessa impunemente as suas próprias escolhas. Consta que para o fim planeado, o realizador esboçara uma cena na prisão com Hipólito (José Meireles), que não foi incluída na versão definitiva, mas que indica bem a vontade de sublinhar o elogio implícito à força moral deste Xavier, demonstrando como nem os extremos das dificuldades desculpam aos corações puros as respostas mais facilitadas. A natureza desprotegi- da deste filme parece resumir-se na descontracção daquela cena com a velha freira (Isabel de Castro) que acende um cigarro na praia, na companhia jovial de dois homens expostos ao contacto de um erotismo amigável. A explicitação da doença terminal da mulher dá a este rosto cansado a legenda de um deus ausente, que nem os seus salva. Os homens estão abandonados a si próprios. A partir daí, vive-se.

Para sempre, Xavier. Para sempre, a memória dos grandes planos de um Pedro Hestnes, de expressão carregada e juventude desmaiada, inigualável em encher um ecrã. Para sempre, a persistência quimérica das cores, demasiado saturadas para o desfalecimento geral das expectativas. Para sempre, palavras incompletas para detalhar todos os cúmulos que irremediavelmente nascem nas ânsias de mais e mais olhos. Como faz falta rever este filme!

Sabrina Marques