A VIDA INVISÍVEL
Portugal e Reino-Unido | 2014 | Cor | 99’
Realização: Vítor Gonçalves

Sinopse
Uma noite, Hugo, um funcionário no Terreiro do Paço, está sentado nas escadas do ministério onde trabalha. Não consegue voltar a casa. Hugo lembra-se da reunião em que António, seu superior no ministério, lhe falou de como temia a proximidade da morte. E como parecera querer dizer algo sobre a vida do próprio Hugo.As imagens de uns misteriosos filmes de 8 milímetros estão sempre a voltar ao seu espírito. Encontrou-os em casa de António depois deste ter falecido. Agora, o desejo de Hugo em adivinhar o que teria ficado por dizer entre os dois traz-lhe outras memórias do passado. Inesperadamente, recorda a mulher que amou, Adriana, reencontrando de novo o sentimento duma vida não vivida.

 

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UMA OBSCURA BATALHA PELA LUZ

A Vida invisível de Vítor Gonçalves é algo diferente, estamos a falar de um dos mais importantes filmes dos últimos anos. E de um dos cineastas mais misteriosos e desconhecidos de sempre (ambas as coisas, naturalmente, são e serão negadas alto e bom som). É autor de apenas dois filmes, o primeiro, há quase trinta anos, era Uma Rapariga no Verão, a obra-prima sobre a qual, nas páginas desta revista, conversámos demoradamente com o realizador (veja-se Stati di mutamento-conversazione con Vítor Gonçalves in “Filmcritica” 504, aprile 2000). É evidente que, para quem não tiver consciência da importância de um cineasta como António Reis (juntamente com Margarida Cordeiro), que foi mestre de Gonçalves, e cuja textura inflamada de terra e céu e humanidade seria útil hoje para quem fala à toa de documentário e ficção, será difícil entender o discurso sobre a sombra estruturado em A vida Invisível, o modo como a obscuridade, no flashback mais imperceptível (quase atonal) e abismal de sempre, avança e recua ao mesmo tempo, e a narração de um desaparecimento (de um certo cinema, de uma cidade, de um homem, de uma mulher) acontece através do ulterior sublime apagamento das diligências feitas para reconstruir o que se perdeu. Esta longa obscura batalha pela luz utiliza justamente a inserção de blocos em Super 8 que extraem do braseiro terrestre fragmentos vulcânicos, cumes de montanhas, extensões marinas, glaciares, ocasos, desfiladeiros, horizontes, para reencontrar a incandescência com a qual António Reis prolongava musicalmente o que da terra é tão infinito, que parece inacabado.

Então (como já em Teguia) quando se fala em preocupação geográfica no caso de Gonçalves entende-se um território, ao mesmo tempo mais amplo e mais específico, onde se desenrola uma partitura espiritual (no sentido de um Bresson) raccord, música de fundo, cortes sobrepostos de sombra e luz, voz, imagem — cujo corpo dialéctico e anti-psicológico, que por fim passa “pelo luto da montagem “ (v. Stati di mutamento-conversazione con Vítor Gonçalves, cit.), podemos ainda denominar filme. E para o filme, já no título, e apontada uma vida problemática, cada vez mais difícil de alcançar, mas cuja invisibilidade é, talvez, a própria armação do pensamento que a edifica. Elipses, vertigens, contemplações (o cais melancólico, a praça de Lisboa cujas obras de reestruturação marcam todo o filme: Pessoa teria ficado entusiasta). Um trabalho quase proustiano em desatar a memória e dar uma alma até aos objectos (os corredores brancos da casa ancestral, as portadas fecha- das das janelas, o aquário vazio, os maples, as vitrines dos móveis, as caixas das escadas: aqui Benjamin teria muito para dizer). E a mulher como espectro, também ela desaparecida para sempre, mas também a única capaz de agitar algo no coração entorpecido, a única que sabe que é preciso abrir as janelas para deixar entrar a luz. Gonçalves revê Lisboa como derradeira e triste terra de uma Eu- ropa inexistente (a não ser pelas obras na praça central, executadas sabe-se lá com quais financiamentos ou com quais bases turísticas), onde os escritórios se esvaziam e os hospitais são lugares mudos onde ir morrer. Mas a vida invisível para Gonçalves é desequilíbrio necessário, magnifica transição, longínqua via de saída luminosa também na dor.

Lorenzo Esposito