DAR A VER

“Se a horta do seu quintal não puder ser a sua escola de cinema, o problema está com a sua idéia de cinema e não com o seu quintal”.

“Os espíritos livres passam pela academia, os servos permanecem nela”.
aforismos de Bruno Andrade

Os “Encontros Cinematográficos” apresentam, dia 14 de Janeiro na Moagem do Fundão, o ciclo “Dar a Ver”, uma mostra de filmes portugueses recentes, alguns primeiras obras, que não tiveram estreia comercial, apesar de muitos terem percorrido vários festivais nacionais e internacionais. O ciclo resulta da constatação de que grande parte do cinema português dos últimos anos tem sido feita completamente à margem, com poucos meios ou meios nenhuns. Estes filmes são algumas das pequenas pedras (pérolas) invisíveis, que também ajudam a construir o grande edifício chamado Cinema. Ao invés de varrer esses filmes para debaixo do tapete como se não existissem, procuramos dar-lhes visibilidade, entendê-los, discuti-los, criando uma memória activa e crítica, quer através da projecção e do encontro, quer através de um jornal com diversos textos inéditos de Hugo Pereira, Daisuke Akasaka, Bruno Andrade, João Palhares, Tiago Costa, Ivana Miloš e Mário Fernandes. Os realizadores convidados – Hugo Pereira, Vanessa Duarte, Hiroatsu Suzuki, Rossana Torres, Daniel Pereira, José Oliveira, João Rodrigues, Sílvia das Fadas e Nelson Fernandes -, não são funcionários da Curta-Metragem, mas cidadãos cinematográficos de corpo inteiro, como os Lumière que nos deram a ver o mundo em pequenos gestos, ou como Méliès, que “rasgou o real” para nos levar pela primeira vez à lua. Força primitiva, esclarecida e plural, de uma aula desfasada da realidade sobre direcção de actores até à animação materialista e abstracta de “Paths of Light”. Da fábrica de mentiras que é o ensino superior à fábrica de verdades que é a vida, a cartografia real e imaginária de um país: as memórias fabris da Covilhã, a Braga moderna de dia e histórica à noite, o Alentejo que acolheu Hiroatsu e Rossana, a ilha do Faial habitada pela família Dabney, um homem trabalhando no seu quintal na periferia de Odivelas. Saímos da sala de aula como maus alunos que somos, para abrir as lentes ao mundo, para ”dar a ver” as fábricas, os campos, as hortas, as cidades, as fotografias faladas ou animadas, os estilhaços do nosso cosmos. Filmes sem caganças, com a imparável potência das formas e a fragilidade da generosidade. Filmes, como diria Straub, que reclamam o pleno direito à cidadania cinematográfica.
Mário Fernandes

 

PROGRAMA

SÁB 14 Janeiro 2017

BLOCO I Duração total: 65 min

15.00

UNIDADE CURRICULAR 5410 – LABORATÓRIO DE REALIZAÇÃO de Hugo Pereira | Portugal | 2011 | 4′ 33”
DA MEIA-NOITE PRÓ DIA de Vanessa Duarte | Portugal | 2014 | 23′
CORDÃO VERDE de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres | Portugal | 2009 | 33′
PRÓ ANO HÁ MAIS de Daniel Pereira | Portugal | 2008 | 4′ 7”

16.30: Encontro com a presença dos realizadores

 

BLOCO II Duração total: 63 min

18.00

BRAGA de José Oliveira | Portugal | 2010 | 35′
A NOSSA CASA de João Rodrigues | Portugal | 2011 | 14′
SQUARE DANCE, LOS ANGELES COUNTY, CALIFORNIA, 2013 de Sílvia das Fadas | E.U.A./Portugal | 2013 | 9′
PATHS OF LIGHT de Nelson Fernandes | Portugal | 2013 | 4′ 30”

19.30: Encontro com a presença dos realizadores

 

CONVIDADOS

HUGO PEREIRA
VANESSA DUARTE
HIROATSU SUZUKI
ROSSANA TORRES
DANIEL PEREIRA
JOSÉ OLIVEIRA
JOÃO RODRIGUES
SÍLVIA DAS FADAS
NELSON FERNANDES

 

FILMES

UNIDADE CURRICULAR 5410 – LABORATÓRIO DE REALIZAÇÃO
DA MEIA-NOITE PRÓ DIA
CORDÃO VERDE
PRÓ ANO HÁ MAIS
BRAGA
A NOSSA CASA
SQUARE DANCE, LOS ANGELES COUNTY, CALIFORNIA, 2013
PATHS OF LIGHT

 

Conversa por António Mercês com Mário Fernandes, programador dos “Encontros Cinematográficos” e do novo ciclo “Dar a Ver”

António Mercês: “Dar a ver” filmes “marginais” mas também um país?
Mário Fernandes: Não sei se são marginais ou não, alguns passaram em festivais importantes e até tiveram relativo sucesso. Outros nunca passaram em lado nenhum. Ambos carecem de maior visibilidade, atenção, memória… só isso. São produções de tuta-e-meia, alheias a qualquer indústria cinematográfica, é verdade… Diz-se no futebol que os orçamentos não fazem as equipas. Os orçamentos também não fazem os filmes. Ou seja, o dinheiro nunca poderá ser um critério. Haverá sempre filmes extraordinários e merdosos, uns com muito, outros com pouco. A diferença está em que um filme com muito dinheiro, independentemente da sua qualidade, tendencialmente será mais visto, facilmente arranjará forma de convencer os distribuidores, os mercados dos festivais, os mercados dos críticos…

Mais do que num país, acreditamos numa “geografia de afectos”: o Daniel filmando o seu pai na Ramada, o José filmando a sua Bracara Augusta, a Rossana e o Hiroatsu filmando o seu Alentejo, o João filmando os seus Açores, a Vanessa a sua memória da Covilhã, a Sílvia as suas comunidades utópicas, o Nelson os seus génesis e apocalipses… Conta-se que um dia, ainda não se discutia na universidade a distinção entre ficção e documentário, Louis Lumière terá dito a um operador de câmara: “traz-me boas imagens dos quatro cantos do mundo”.

A.M.: Porquê estes filmes e não outros?
M.F.: Essa é uma pergunta retórica que se pode fazer a propósito de qualquer festival ou mostra, e a resposta óbvia será o gosto pessoal, a afinidade cinematográfica e humana por determinados filmes e pessoas, partindo naturalmente do que vamos vendo, conhecendo, descobrindo. É impossível estar a par dos milhares de filmes, livros ou quadros que todos os dias se fazem… Grave seria se seguíssemos o marketing e as manchetes dos jornais como critério de selecção. Somos livres para reconhecer qualidade tanto a um blockbuster americano como a um filme amador do Zé da Esquina. De resto, o cinema não se constrói só de grandes pedras. As pedrinhas também são precisas. Alguns convencem-se que trazem grandes pedras e afinal não trazem nada.

A.M.: Essa afinidade passa também por repetir convidados?
M.F.: Desde que tenham uma obra nova a apresentar que nos agrade, não vejo porque não. Assim aconteceu com a Rita Azevedo Gomes, o Pedro Costa, o Manuel Mozos, o José Oliveira, o João Rodrigues, etc.. Preferimos repetir convidados com bons trabalhos do que apostar na novidade só porque é novidade.

A.M.: Vários dos filmes seleccionados recorrem ao uso da voz off, o que nem sempre é muito bem visto pela crítica…
M.F.: Acho que o Miguel Marías desmistificou essa questão há pouco tempo, quando disse que a voz off é a forma cinematográfica por excelência, porque é a única que não existe nas outras artes. Consegues imaginar o início de “O Vale era Verde” sem a voz off? E filmes como “A Saga de Anatahan” do Sternberg ou “O Romance de um Batoteiro” do Guitry? Há milhares de grandes exemplos, no cinema negro… Curiosamente, foi o Guitry que disse ter trocado o teatro pela “mais deplorável das artes” (referia-se ao cinema), entre outras coisas, para poder usar a voz off. O uso que dela se faz nos filmes, se é justificado, adequado, etc., já é outra conversa. Nos filmes em questão o seu uso é essencial, nunca decorativo.

A.M.: O ciclo abre com uma aula sobre direcção de actores. É um remoque à academia?
M.F.: Admito que sim, os professores preparam os estudantes portugueses para dirigir o Brad Pitt ou a Angelina Jolie, é estúpido mas eles têm que justificar os seus salários… Acima de tudo, esse filme é um genial jogo de representação. O Hugo Pereira, que também é o realizador, encarna um duplo papel: aluno na imagem e professor no som. Quem dirige quem? O aluno presente será o futuro professor, repetindo a matéria como um papagaio, ou mandará o curso à fava para ver o mundo? Foi o filme mais subversivo que vi sobre a academia.

A.M.: Para terminar, há algum filme que tivesses pena de deixar de fora nesta primeira edição “Dar a Ver”?
M.F.: Há vários por diversas circunstâncias, mas esperamos um dia poder projectá-los de alguma forma. Há sobretudo um que me custou não estar aqui: a “Tempestade” de Carlos Silva. Foi o mais puro e duro filme que vi sobre a ameaça da troika em Portugal, sem demagogias nem palhaçadas. Numa mise en scène simples e precisa, um só plano cheio de imagens, sons e nuances, é comovente a presença do próprio Carlos Silva… Tem o tom confessional e a genealogia maldita de um “Número Zero”, um certo “Lubitsch touch” nas histórias eróticas que evoca e um lado quase alegórico… Ele usa um capacete de soldado para amortecer a possível queda do tecto, enquanto fala das suas privações, clausuras, fantasias… Não esqueço a frase final do filme – “gostei de viver, a cassete está-se a acabar” -, deixando-nos num silêncio gelado como a lâmina da espada que o próprio Carlos segura enquanto nos olha, apenas quebrado pelo “Tic-Tac” do relógio e a “tempestade” lá fora. Enfim… Ele achou que o filme não tinha qualidade e não o quis mostrar. Custou-me mas admirei a sua honestidade.

(Entrevista por António Mercês a Mário Fernandes no Jardim das Amoreiras em Lisboa, 23 de Novembro de 2016).