CAVALO DINHEIRO
Portugal | 2014 | Cor | 104’
Realização: Pedro Costa

Sinopse
Enquanto os jovens capitães fazem a revolução nas ruas, o povo das Fontainhas procura o seu Ventura que se perdeu no bosque.

 

25dd81d0d2c9d96f5d6a19a27fed9fb52  cavalo3  maxresdefault
 

GUARDA O MEU SILÊNCIO PARA SEMPRE

O Ventura lá continua no Casal da Boba com a sua família. Tal como quase todos os outros nossos atores, o Benvindo, o Tito, o Lento… Os anos depois do “Juventude” têm sido duros para eles: desemprego, desespero, carestia extrema – no último ano, a renda de casa do Ventura passou de 140 para 340 euros! Depois da rodagem desse filme, que foi muito longa e extenuante, acho que sentimos todos a mesma coisa, ao mesmo tempo: era preciso sair do bairro para pensar um pouco. Fomos para as colinas em redor da cratera do centro comercial Dolce Vita, e passámos muitas tardes debaixo dum lindo alpendre numa horta com bananeiras e figueiras e trabalhámos em dois filmes chamados “Tarrafal” e “O nosso homem”. Ao longe, vía-mos a Boba, o Casal da Mira, a Brandoa, Odivelas e mais ao longe Lisboa. Era preciso estar longe para voltar a pensar na nossa casa, no trabalho, no futuro.

Depois de “Juventude em Marcha” percebi que ninguém tinha vontade de voltar a filmar na Boba. A história do realojamento e da chegada ao novo bairro já havia sido contada. A verdade é que eles não gostam de lá estar. Nem eu. Não há um único habitante desses apartamentos que não afirme preferir mil vezes a sua velha barraca das Fontainhas. É este o terrível estado em que as coisas estão. Eles perceberam que já não tinham casa. Nem país. E eu perdi o meu estúdio. E as colinas da Amadora começaram a confundir-se com as de Santiago e Santo Antão. E percebemos que já só temos a memória. Foi no momento da Revolução de 25 de Abril de 1974 que o Ventura se quebrou e começou a não conseguir juntar as peças todas da sua vida. Foi nesse Verão quente que ele começou a pensar e nesse pen- sar perdeu-se. Começou a tropeçar e a cair dos andaimes. Foi nesses anos que eu comecei a ver filmes, a ouvir música, a viver. Foi um mo- mento de grande entusiasmo e de grande aflição. O delírio foi juntar todas as peças naquele elevador infernal: a inocência e a loucura desses jovens admiráveis, Ventura, os capitães, os soldados…

No dia 25 de Abril eu estava em Lisboa. Eu era um miúdo, pensava que não tinha ainda idade para grandes ousadias. Mas aquilo foi tão intenso, tão avassalador que no dia 27 já andava a passear na Baixa. Depois passei os dias todos na rua, até ao 1 de Maio. Muitos anos depois, pus-me a pensar em tudo o que o Ventura me dizia e fui rever as centenas de fotos das multidões e sobretudo aquela gigantesca manifestação do 1o de Maio. Reparei que quase não havia rostos pretos nas imagens. E perguntei-me porquê – já então havia uma comunidade de emigrantes cabo-verdianos, guineenses, angolanos, são-tomenses em Lisboa -, onde estavam eles? Confusos, perdidos, preocupados com o futuro. E apavorados cada vez que viam passar um jipe do COPCON. Temiam perder o ordenado. Pensavam que iam ser recambiados. Deixaram de poder sonhar em trazer as mulheres e os filhos que deixaram nas ilhas. Tinham medo de serem presos por falta de papelada legal. Haviam começado há pouco a construir as primeiras barracas clandestinas nos subúrbios de Lisboa, aos fins- de-semana, num espírito de entreajuda. Lutavam por empréstimos pedidos aos patrões para comprarem tijolos e cimento e tantas vezes descontados do ordenado mensal. É uma memória muito pre- sente e quando o Ventura fala de 1974 e 1975 parece que fala de hoje, da ‘sua construção civil’ em ruínas, das obras paradas, das falências, dos golpes dos patrões em fuga para o Brasil… daí este sentimento de que o cinema não pode senão continuar a reviver esta tragédia e não existe senão no presente.

Devemos voltar outra vez ao princípio, ao Griffith, ao Chaplin, ao Stroheim. Todos começamos pelo mais banal, agarramos nos fait divers, naquelas histórias humanas, que sempre nos impressionam nas chamadas páginas de sociedade. Mas depois é preciso dar o litro para as desbastar, para as concentrar, e, com sorte, para nos aproximarmos do osso, do ponto onde essa história nos começa a fugir. A cabeça do Ventura está cheia de cicatrizes. Levou 93 pontos na testa depois de uma luta de navalhas. A cicatriz no braço do ‘inimigo’ também é verdadeira: ele caiu na caixa dum elevador durante uma descofragem. E o pai dele também já tinha morrido noutra descofragem, em Talaíde. A desgraça de um torna-se o infortúnio do outro e assim por diante. Nesta história trágica e imutável tomamos algumas liberdades que a ficção permite. Mas as cicatrizes na cabeça de Ventura e no braço do Tito Furtado não são make-up, estão lá sempre e bem visíveis. Pouco depois de “Juventude em Marcha” perguntei-lhe de onde vinham. E a palavra dele é sempre a mesma: foi um “choque”. Um acidente de trabalho? Uma disputa com um colega de trabalho?

O Jardim da Estrela, o Parque Eduardo VII, o Campo Grande, eram sítios onde os emigrantes passavam os domingos. Faziam bailaricos com gira-discos, jogavam à bola, andavam de gaivota. Havia muito mais homens que mulheres. Elas tinham ficado lá para trás, à espera na terra. As toneladas do trabalho da semana descarregavam-se aos domingos. As frustrações e os fracassos. Bebia-se muito. E nessa altura ainda não existiam os guetos que se criaram depois, passeava- se muito mais por Lisboa. O Ventura conhece muito bem a cidade, trabalhou em muitos sítios que conhecemos bem: os Armazéns do Conde Barão, Chelas, a Gulbenkian, a Caixa Geral de Depósitos do Rossio. Gostava de passear no Bairro Alto. Claro que descia ao In- tendente. O Ventura reformou-se por invalidez muito novo, aos 20 e poucos anos, por causa desse golpe na cabeça: já não podia subir a andaimes, tinha vertigens. Resumindo: nem o Ventura me diz tudo nem eu quero saber… Os nossos filmes também são feitos deste enigma, desta separação e distância. Há um grande e silencioso mar negro entre nós dois, e este mar também faz muito do trabalho do filme.

Tenho sempre a impressão de viver um dejá-vu sempre que vejo um filme da época dita clássica, do Raoul Walsh, do Jacques Tourneur, do Fritz Lang. A história de cada um dos nossos dias não é linear, nunca é completa. Esses filmes não fugiam a essa complexidade, a essa tragédia, a essa descronologia, aos estilhaços que são a nossa ‘história’. Ou seja, esses filmes não fugiam do confronto com a realidade. Pelo contrário, pareciam sempre feridos pela realidade. São muito raros os filmes, hoje em dia, que conseguem uma tal riqueza sentimental, emocional, sem descambarem num pretensiosismo qualquer. Os problemas da construção dum filme eram mais bem estudados e trabalhados e não estou a falar apenas da escrita do dito ‘argumento’, vai muito para além desse trabalho, começa – e até talvez acabe – no domínio do que costumamos chamar ‘produção’. Eu passo tanto ou mais tempo a pensar em fichas médicas, registos e certificados de residência do que a planificar cenas e a pensar planos. Quando digo que as coisas são contadas duas ou três vezes em “Cavalo Dinheiro” quero dizer que essas coisas são tão reveladas como ocultadas. Como dizia um poeta, eu também gostava de obscurecer a obscuridade.

A Vitalina Varela não é um fantasma. É uma mulher cabo-verdiana de 50 anos de idade que ainda não conseguiu obter uma autorização de residência neste país hipócrita e ingrato. Ainda não conseguiu a miserável indemnização ou pensão que lhe é devida por todas as auto-estradas e Colombos que o falecido marido ajudou a erguer. A Vitalina são todas as mulheres que estão ou estiveram naquela situação. Que ficaram para trás, que ficaram esquecidas, que ficaram à espera. Todas as mulheres que não chegaram a tempo. O que é terrível é que todos sabemos que elas nunca chegarão a tempo… A Vitalina é uma força do passado que assombra o presente do Ventura. E ele também percebeu que aquela mulher lhe vai dar luta na exumação do que chega dos confins da memória. É muito interessante ver como é que ele resiste a isso. Há uma fortíssima tensão nos planos em que eles estão juntos. O Ventura, que já é um homem partido, quebra ainda mais porque ela só lhe traz os momentos que ficaram por viver, as cartas não enviadas, as cartas que não foram recebidas. Tudo a que se faltou. A Vitalina são todas as mulheres que eu vi um dia na Ilha do Fogo. Alguém que nos vem falar de um tempo de vergonha e de promessas não cumpridas. Eu acho que a Vitalina é o tempo. É a carta. A juventude e o sonho dos jovens amantes separados. É a voz de uma mulher fiel neste tempo de vergonha, traição e morte.

Isto está tão reles que já quase nos esquecemos que o cinema é um ritual e eu gosto que nas minhas rodagens isso ainda se sinta. E por vezes sente-se mesmo um transporte qualquer. Podemos dizer que a Vitalina usa o cinema para encantar o Ventura, usa a câmara para o tratar dos males do espírito, e consegue ir tão longe no encanto que ele veste outra vez a camisa de renda da sua mocidade. E lá va- mos nós outra vez… O Jean Rouch virava-se muitas vezes para os seus atores e dizia-lhes: “tu agora vais fazer de padre, veste aquela bata, tu ali fazes de polícia, põe aquele boné, e tu és o tipo que matou a cabra, pega na espada, agora vais vingar a tua mulher, dás-lhe umas lambadas, etc, etc… ”, e os atores desatavam a representar convictamente. O Rouch falava em possessão. Nos meus filmes, sobretudo no “No Quarto da Vanda” (que era um filme de possuídos para possuídos), isso também nos aconteceu. E já estou habituado a confiar nestes ‘poderes’, é tudo o que temos… a memória, e pouco mais. Estou habituado a trabalhar com o que sobra das pessoas, com os restos das coisas (não aconselho aos mais frágeis, pode ser muito perigoso). Cada vez mais sinto que fazemos filmes apenas com as nossas forças, com restos de pessoas, de coisas, de sítios, de ideias, de dinheiro. Falta pouco para que façamos os filmes apenas com o que nos deixarem…

“Na nossa barraca não há canetas”, dizia o Lento no “Juventude em marcha”. Era uma maneira de dizer que há filmes por fazer, que a história está mal contada, que há muitas coisas por vingar. Como qualquer prisioneiro que se preza, em “Cavalo Dinheiro”, o Ventura vai precisar mesmo da caneta. Ele pode trocar de roupa, mudar de espaço e apanhar uma aeronave para outro tempo, mas a caneta e o papel estão sempre no bolso. A caneta, a navalha e o passaporte. De onde vem isto? Há muitos anos, quando fiz “Casa de Lava”, trouxe correspondência de várias pessoas da Ilha do Fogo para Portugal. Foi também uma maneira de descobrir o bairro das Fontainhas: trazendo notícias da terra, entregando cartas. E nunca soube bem se lhes trazia boas ou más notícias, que consequências teriam? Tragédia, alegria? Que mudanças, que esperanças? Eu não sabia. Nunca li essas cartas, apesar da curiosidade. Estou a dizer isto quase como se fosse a origem do mundo, claro que não é. Mas é a origem do meu. É a origem dos meus filmes, qualquer coisa que já estava ‘sonhada’ quando o Pedro Hestnes escreveu uma carta para si próprio e para o seu irmão, a carta que o vai perder para sempre. Por isso é que continuo a precisar da ajuda de pessoas como o Ventura, a Vanda ou a Vitalina para me escreverem os filmes, para me ajudarem a perder- me. Porque os mais bonitos são aqueles em que não se sabe o que está escrito. E os mais transparentes são os mais misteriosos.

A cena do elevador tem uma densidade emocional muito grande e pede ao Ventura que passe por imensos estados diferentes, do pânico à demência, até a prostração terminal. E arranca-lhe imensos tempos e tons contraditórios, desde aquela espécie de lamento do inocente até à voz quebrada da raiva da condenação. Também a câmara tinha que variar muito e, consoante o momento, defendê-lo ou acusá-lo com diferentes alturas, distâncias e ângulos. Era um combate violento que exigia paredes fortes, à prova de bala. Mas também é necessário um determinado acondicionamento. O Ventura reclama-o, precisa de calma e de tempo. Até pede um certo jogo de intensidades de luz e de sombra. Quando digo que o Ventura é um dos últimos grandes actores de estúdio não estou a brincar. E o quarto da Vanda já era um pequeno estúdio e a Vanda nunca foi muito diferente duma Garbo ou duma Joan Crawford, palidez, olheiras e taras incluídas. A nossa pesquisa, o nosso combate também é com a luz porque tenho a impressão de que cada dia que passa é mais dificil chegar a resultados interessantes com estes pobres equipamentos digitais que usamos. E quase todos acabam por ceder a facilidades e os filmes também se ressentem e enfraquecem com a falta de trabalho e de interesse atrás da câmara.

O título “Cavalo Dinheiro” foi sugerido ou proposto pelo Ventura, quase sem querer. Foi dito baixinho. Vem da mocidade dele em Chão do Monte, em Cabo Verde.
Vem das idas à fonte para ir buscar água, das corridas a galope atrás das cabras, vem do Verão em que conheceu a sua Zulmira. É uma sensação de movimento, de felicidade. E os nossos filmes deviam recuperar essa palavra maldita: dinheiro. É um título que não tem preço.

Pedro Costa