HOMME PORTANT
Bélgica | 2003 | 16mm | Cor | 61′
Realização: Boris Lehman

Sinopse
Boris Lehman apresenta-se, neste filme, como o homem que carrega o fardo do corpo, as bobines dos seus filmes, o seu saco e a sua velha Nikon, is Boris Lehman.
Um ensaio sobre o peso e a leveza, sobre o desejo de voar e de se confundir com o ar e com a luz. Quando se encontra com outro homem-máquina, que carrega consigo imagens digitais, o seu sonho torna-se, enfim, realidade.

 

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DO CINEMA VISTO PELO QUARTO ESCURO E NO CLARO CRESCENTE

O Boris pratica – no sentido estrito, coisa que ainda lhe vale algum perfume de escândalo e o pavor/vapor da rejeição liminar – um cinema na primeira pessoa. Essa primeira pessoa – ora mestre-de-cerimónias, ora cordeiro do sacrifício – precisa de se secundar a si mesma para se tornar terceira, outra. Ainda mais radicalmente estranha, desterrada e estrangeira do que a pessoa algo líquida fugidia e torrencial do autor.

Em HOMME PORTANT, o Boris retoma o seu (já método de) trabalho, de ressurreição e suscitação mas, sobretudo, de oscilação entre o literal e o extrapolado, entre a máscara que cola à cara e a necessidade de descolar. Trata-se de glosar o tema do leve e do pesado, adoptando caleidoscópicas conotações, assumindo a alegoria pobre, cavalgando a história pessoal e as histórias míticas, mas também a catadupa da mise en abyme. Aqueles que, como alguns de nós, seus velhos amigos, praticam o cinema do Boris e dele esperam alimento vital, não podem deixar de ser sensíveis a uma tristeza que por lá se esconde e mostra o nariz, aqui sob a forma de uma meditação acerca dos prolongamentos do corpo, do olhar, da mente. O cinema-menino teve a feira como presépio e nasceu de entusiastas da invenção. Não passou muito tempo até aparecer quem vislumbrasse na divina máquina de filmar um instrumento de conhecimento. Boris acrescenta a essa visão do cinema – uma visão orgulhosamente primitiva, se quisermos… – a consciência melancólica de que a máquina tanto descobre e revela quanto apaga e aniquila. Não é certamente por acaso que a sétima arte se confunde com a história atroz do século XX. Era preciso encontrar um dispositivo ritual para criar a distância necessária a fazer dessa adenda um jogo de espelhos suportável. Donde, o humor que roça o imaginário BD e o rigor cómico do percurso na catedral.
Honrando a exigência do primitivismo, a sua gravidade só aparentemente ingénua, Boris recorre a «invenções» e a «corpos estranhos» para lembrar que o melhor do cinema é criação e que o melhor da máquina é criar estranhamento. Não podendo hoje, como Vertov, utilizar o cine-olho como instru- mento de construção do lugar singularmente mais habitável, Boris propõe, através da sua poética peculiar, outros modos de habitar o tempo e o espaço. De lá viajar. Entre.

Regina Guimarães, Outubro 2011

 

Couple, Regards, Positions | Homme Portant | La Derniere (s)Cene

O que é que liga estes três filmes ?

O primeiro foi realizado numa semana, em 1982. Pretendia ser um filme de amor, um filme sobre a relação amorosa entre mim e a Nadine que, na época, vivíamos juntos, mas não pretendia ser um filme psicológico nem narrativo, apenas um filme simbólico e experimental – através da utilização de um pano de fundo surrealista e alquímico – sobre a união dos contrários (o fogo e a água, o preto e o branco), sobre um casamento impossível. Todos os dias improvisávamos, numa estrebaria transformada em estúdio, as cenas a rodar. Trazía-mos uma ou duas malas com acessórios e alguns figurantes. Todas as cenas eram mudas, excepto uma em que a Nadine canta uma ária de Haendel, acompanhada ao piano por Boris. Homme Portant data de 2003, mas contém bastantes imagens rodadas dez anos mais cedo. É um filme que fala do sofrimento de carregar, de carregar com o nosso próprio corpo, com a csruz, com o mundo, etc., sem possibilidade de repouso, um pouco como Sísifo. Para esse filme, foram inventadas duas máquinas, uma delas para tentar levantar voo, a outra para transformar a imagem física em imagem virtual, em imagem sem peso. É um filme «crístico» evidentemente, tal como La Dernière (s)cène, que faz parte dos Evangelhos segundo Santo Boris, e no qual eu desempenho o papel de Cristo. Este terceiro filme foi rodado numas horas, num domingo de manhã, frente à última casa ainda de pé duma rua constituída essencialmente por ateliers de artistas, condenados à demolição para serem substituídos pelo edifício do parlamento europeu. Não há actores neste filme (como na maioria dos meus filmes), apenas amigos que desempenham o seu próprio papel. Todos são cineastas e, de algum modo, meus discípulos.

Os três filmes podem pois ser considerados como auto-ficções. São filmes sem argumento no sentido clássico do termo, sem mensagem, ao mesmo tempo graves e leves, impregnados de mistério e de humor.

Eis-vos embarcados nestas minhas loucas loucuras, se vos dispuserdes a acompanhar-me durante o tempo da projecção. No fim podereis julgar, aplaudir ou criticar. Fico à espera das vossas reacções.

Boris Lehman, Outubro 2011