JOSÉ LOPES
Portugal

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Biografia:
José Manuel Lopes nasceu a 31 de Março de 1958. Tendo frequentado o curso de Antropologia Social, cedo se interessou pelo Teatro, participando como actor em diversas peças, entre elas “Os Negros” de Jean Genet com encenação de Rogério de Carvalho, “Vida e Morte de Bamba” de Lope de Vega com encenação de Luís Miguel Cintra ou “Epopeia de Gilgamesh” com tradução de Pedro Tamen e encenação de Adolfo Gutkin. Esteve presente no Festival Internacional de Teatro de Lovaina na Bélgica com a peça “Eu, Antonin Artaud” e no Festival de Teatro de Sitges (Barcelona) com uma peça encenada por Adolfo Gutkin dedicada ao mito de Drácula. Colaborou ainda com Luís Miguel Cintra na docência da disciplina de direcção de actores na Escola Superior de Teatro e Cinema. Enquanto actor de Cinema, tem preferido trabalhar em produções independentes, filmes como “Adeus Lisboa” de João Rodrigues, “Interrogatório” de Maria Mendes e José Pedroso, ou “Longe” de José Oliveira.

 

CONVERSA COM JOÃO RODRIGUES E JOSÉ LOPES por João Palhares (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2016)

João Palhares: João, as tuas curtas têm muito que ver, parece- me, com a família mas também com a ligação à terra, às raízes e à Natureza. O José Lopes recita, se não me engano, Hölderlin no Adeus Lisboa – um poeta que escreveu imenso sobre isso. O A Nossa Casa acaba com Paul Robeson a cantar Deep River. Esses valores agora estão fora de moda (se calhar sempre estiveram), parece que já não há tempo para nos sentarmos e olharmos um bom bocado para uma nuvem, para um rio ou um vale ou para um pôr-do-sol. Acreditas, como o Michael Cimino, que a natureza testa quem faz filmes só revelando a sua beleza depois de muita espera e paciência?

João Rodrigues: Para começar, gostaria de dizer que nunca pensei nas ideias dos meus filmes como forma de transmitir “valores”. O que pensei e tentei mostrar no meu filme Adeus Lisboa foi uma relação entre um pai e um filho, de uma forma muito simples, com o pensamento da morte por perto e o desejo de estar perto de casa, que está fisicamente longe do local onde se encontram, que é Lisboa. Essa ideia veio directamente da minha própria experiência. Respondendo agora à questão – penso que é necessário ter paciência ao filmar, mas porque preciso de encontrar uma forma diferente e evocativa, mas coerente e eficaz, de mostrar as coisas que pretendo. Tem a ver com o modo com que vemos. Portanto não é importante para mim se consideramos isso uma revelação ou uma pro- cura do melhor modo de intermediarmos o que vai ser visto e ouvido. O que interessa é a conjugação de um resultado.

JP: Disseste sobre o A Nossa Casa teres usado uma voz alemã propositadamente para causar estranheza e para fugires ao perigo das palavras servirem apenas para explicar as imagens ou para as comentar. E que usaste a narração como se de uma música se tratasse, o que explica algumas entoações e as pausas entre algumas palavras. E esse português dito com sotaque estrangeiro serve também propósitos narrativos: dá corpo à realidade dos emigrantes na Ilha do Faial durante o séc. XIX, nomeadamente aos Dabney e a Roxanna em particular, que é alguém que existiu e que deixou testemunhos em que te baseaste mas também uma personagem do teu filme. Mas queres falar um bocado sobre esse trabalho? Tens um método preciso ou chegas a esse resultado instintivamente? E qual foi a importância dos Dabney para a ilha do Faial? Estiveram lá durante todo o século XIX, não foi? 

JR: Primeiro que tudo descobri as fotos tiradas pelos Dabney, e por outras pessoas que viveram no século XIX. Esta família americana viveu na minha ilha durante quase todo esse século (três gerações) e tiveram grande influência, social, económica e diplomática, pois na altura a actividade do consulado americano e o negócio que possuíam podiam ser coincidentes. O consulado foi passando de geração em geração, assim como o negócio. Eram protestantes e ficaram na recordação das pessoas principalmente por terem sido grandes filantropos, nas alturas de necessidade (e não só) da população pobre, que era grande. Depois de observar algumas fotos, que achei muito belas e misteriosas, fui investigar os anais da família, que foram compilados pela Roxanna Dabney e pensei juntar alguns desses textos às fotografias. Não queria tornar a imagem ilustrativa ou as palavras obsoletas, como já disseste. Nesse sentido achei que era interessante ter uma voz trabalhada dum modo em que se tornasse como que uma aparição física da memória de uma rapariga, pode ser ou não a Roxanna, que é filha do estrangeiro que mora na ilha. Dei à minha colega uma folha com o texto e uma pontuação que criei onde indicava os tempos de pausas entre as palavras e nelas mesmas, conforme me pareceu mais indicado em relação às fotos que tinha filmado. Expliquei-lhe mais ou menos o que pretendia para a entoação e ela tentou. Depois fomos corrigindo até chegar a um ponto que me pareceu aceitável. Portanto não há nenhum método, nesse filme foi tudo feito com base numa intuição sobre o que poderia resultar e tentar adaptar os materiais entre si.

JP: Bom, dediquemo-nos então ao Adeus Lisboa. Filme inspirado directamente em acontecimentos da tua vida, João, e interpretado por ti e pelo José Lopes. Primeiro perguntava-te como te lembraste dele para fazer o papel do teu pai e também se houve um guião ou tiveram tempo para pensar as coisas dia a dia e plano a plano. E, José, como foi receber esse convite? Falaste há pouco tempo do trabalho de “não representação” que tiveste que fazer para a tua personagem no filme. Queres falar mais um bocado sobre isso?

JR: O filme foi feito para uma disciplina no último ano do meu curso de cinema, onde podíamos fazer o filme que quisésse-mos e experimentar livremente. Tinha conhecido o Zé num dos projectos da escola, no 1o ano. Para quem conhece o Zé, é uma personalidade que fica na memória de todos e eu não fui diferente. Gostei da forma como se movimentava e dos seus gestos no filme que estávamos a fazer. Senti uma certa familiaridade nele, que não identifiquei imediatamente o que era, embora nunca tivesse conhecido ninguém como ele, com uma vivência tão diferente. Conforme o curso avançava, via-o ocasionalmente nas rodagens de outros filmes na escola. Pensei que seria bom trabalhar com alguém tão apreciador de cinema, que já fez tantas coisas interessantes, mas acima de tudo porque gosto do que ele faz, não é o típico actor que aparece num filme. Faz lembrar cinema muito antigo e ao mesmo tempo ele tem um conhecimento do teatro muito grande, tudo aliado à sua própria sensibilidade. Tudo isso contribuiu para lhe pedir para entrar no meu filme. Além disso, essa maneira de ser, a sua paciência e abertura com um jovem inexperiente, foi muito importante para me pôr à vontade, pois o guião era uma história muito simples e as cenas eram pouco mais do que blocos soltos onde o que se passava na maioria dos casos era muito simples. Permitia-nos em alguns planos, como no plano do almoço, ter um pouco de improvisação e surpresas. Noutros planos como no da conversa, havia um texto específico e algo grande e difícil que o Zé conseguiu tirar num só plano, com a dificuldade acrescida do clima inconstante que era importante nessa cena! Há planos totalmente pensados e estudados e outros que foram decididos na altura. É uma forma de trabalhar que não aconselho, mas eram as contingências provenientes do contexto deste filme.

José Lopes: Receber o convite de João Rodrigues, na Primavera de 2012 (já passaram 4 anos, senhores!) para trabalharmos neste projecto final – Adeus Lisboa, para a Escola Superior de Teatro e Cinema – devo dizer, com toda a franqueza – foi inesperado, emotivo e milagroso. Inesperado porque, à época, a minha vida pessoal traduzia-se numa existência precária e a minha auto- estima enquanto actor, ou melhor, enquanto “trabalhador da cultura” estava muito em baixo… É importante sublinhar este aspecto porque fazer esta curta-metragem, Adeus Lisboa, representou uma terapia no plano pessoal e um renascer das cinzas do meu trabalho de actor. Foi no ano lectivo de 2009-10 que eu e o João Rodrigues nos conhecemos e que nos encontrámos inicial- mente, assim como os outros companheiros que participaram e colaboraram em Adeus Lisboa – Tomé Costa, Tiago Costa, Diogo Sequeira ─ sem esquecer, a Prof.a Manuela Viegas (Professora de Montagem e orientadora do Projecto) que, além de ser minha amiga desde os longínquos anos 70, ajudou a que este trabalho final chegasse a bom porto. E, desde que nos conhecemos, recordo-me, por exemplo dos belos e emocionantes convívios à hora  do almoço, na Cantina da Escola de Cinema onde pude constatar as “afinidades electivas” que nos ligavam entre todos: o amor ao cinema e à vida; o gosto e o prazer de cineastas que muito admiramos como sejam o Robert Bresson, o Jean-Marie Straub, o António Reis, o John Ford, o Manoel de Oliveira, o Pedro Costa, o Manuel Mozos. Recordo-me também, nas primeiras conversas que tivemos à mesa do almoço ou nos corredores da Escola de Cinema, do imenso prazer que senti na companhia deste grupo de jovens estudantes com idade para serem meus filhos… A juntar a isto tudo (que não é pouco), dada a minha amizade e até cumplicidade com o saudoso Pedro Hestnes (actor que este grupo de jovens admira), fomos trocando impressões, experiências, pontos de vista e modos de olhar o cinema e a vida em geral, e partilhando os nossos anseios artísticos. No meio destes encontros maravilhosos, fui reparando num jovem aluno, vindo da Horta (ilha do Faial, Açores) para estudar cinema, discreto, um pouco tímido mas sempre presente que se veio a revelar um amigo de rara sensibilidade, sentido do rigor, senhor de um olhar e uma voz próprios, uma elegância que releva de um realismo poético e telúrico único, só dele… E não se pense que exagero: quando vi, no mesmo ano em que rodámos Adeus Lisboa, o seu outro filme, A Nossa Casa (rodado no Faial, a partir de fotos, memórias e rela- tos da família de um cônsul norte-americano instalado na cidade da Horta, no século XIX; veja-se o recurso à voz “off” com a colaboração de uma colega alemã da Escola de Cinema, Astrid Menzel; e a ajuda preciosa de um outro amigo e colega de curso, açoriano, Luís Bicudo, que trabalhou no “desenho de som”); quando vi, pois, este segundo trabalho do João Rodrigues, percebi real- mente o seu universo poético, estético, fílmico, digamos. Espero, sinceramente, que o cineasta João Rodrigues não fique por aqui e encontre de novo condições para voltar a filmar. Curiosa- mente, o João Rodrigues estudou montagem na Escola de Cinema tal como o nosso conhecido e indispensável Manuel Mozos…

Quanto à tua pergunta sobre a “não representação”, retomo aquilo que referi durante a apresentação de Adeus Lisboa, no passado dia 26 de Janeiro, em Braga. Quando digo “não representação” refiro-me àquilo que na definição anglo-saxónica, “underacting”, designa o contrário de “overacting”, isto é, utilizar uma forma de representação, do jogo do actor, que é dada pela contenção, sobriedade, despojamento e, sobretudo o contrário de uma representação histriónica, espectacular, exuberante; numa palavra, uma atitude dramática que procura a essência da personagem ou figura que retratamos, o “tutano” da vida dessa pessoa. O que para mim se traduz num trabalho imenso – não se trata, nem de “naturalismo” nem de “realismo”, nem de uma “naturalidade cinematográfica”, essa armadilha de tan- tos filmes, nem sequer da chamada “imitação da vida”. Trata- se, isso sim, de procurar o tom justo e isento de concessões ao facilitismo e ao previsível. Eu diria, com toda a franqueza que foi um trabalho-charneira para mim porque, ao contrário de outros trabalhos como actor, quer no cinema, quer no palco, tratou- se de “retratar” o pai do João, sargento na reserva da Armada Portuguesa, António Rodrigues e do reencontro de ambos em Lisboa, a propósito da convalescença e tratamento a um cancro da próstata. É preciso dizer, como já referiu o João Rodrigues na sua resposta atrás, que foi preciso lidar com várias contingências (de tempo atmosférico, de prazos para a rodagem e montagem do material filmado e até da disponibilidade dos colegas que nos ajudaram neste Adeus Lisboa, além do material usado na filmagem, câmara, equipamento, de som que, como sabeis, é sempre escasso, nas Escolas de Cinema para atender às necessidades dos vários Projectos Finais) é bom sublinhar que, na parte que me tocou para pesquisar e preparar este trabalho, tive acesso a escassos elementos ─ não conhecia o pai do João Rodrigues, não vi sequer uma simples foto do senhor António Rodrigues e, desde o dia em que o João me convidou para este filme, rodagem incluí- da, não tivemos muitas oportunidades para nos encontrarmos. Recordo-me, por exemplo, de pensarmos num segundo actor que desempenhasse o papel do filho. Como não foi possível, o próprio João Rodrigues, representou-se a si mesmo. Em jeito de balanço crítico, que lamento não termos conseguido encontrar um actor para o “filho João Rodrigues”. Assim o João, além de realizar e montar o filme, teve de passar essa prova que é ser intérprete de si próprio. Quanto a mim, no que concerne não só ao actor mas, sobretudo, ao homem, ao pai – tendo uma filha poucos anos mais nova que o João – devo dizer que foi um “tour de force”, um verdadeiro trabalho sem rede, até do ponto de vista pessoal (eu sou órfão de pai; nunca conheci o meu pai); e como se tratou de encarnar o papel de um pai “vivo”, que felizmente, ultrapassou a sua doença, senti uma responsabilidade acrescida neste filme. Resta-me concluir, salientando algo que já referiu em ocasiões anteriores a propósito deste Adeus Lisboa: não sei se o cinema, o bom cinema, o cinema vital transforma a vida das pessoas; mas esta pequena obra, este olhar sobre o forte laço afectivo que une este pai António e este filho João com a doença presente e a angústia do fim (a morte) no horizonte diário da família Rodrigues, tocou-me fundo. Se há filmes que salvam as pessoas, que as tornam melhores, mais atentas, mais sensíveis, mais gratas à vida e aos bons momentos que ela nos proporciona, este poema cinematográfico é disso exemplo. Não temos espaço nesta entrevista para falarmos sobre
isso mas, a cada nova (re)visão de Adeus… emociono-me com o simbolismo do plano da laranja no Parque Silva Porto em Benfica, a luz, o vento que se faz sentir, soprando nos arbustos, árvores, folhas enfim; um avião que ouvimos sobrevoar Lisboa (como um eco, ou uma memória da história das caminhadas que o pai-António narra ao filho-João), o ritual da mesa ao al- moço, em casa, uma refeição de peixe, pai e filho enquadrados por um calendário-foto dos Açores onde vislumbramos a Ilha do Pico, e no corolário disto, aquele “plano iconográfico”, com o pai-António, sentado sobre a terra, em declive, recitando um excerto melancólico e nobre do grande poeta germânico Friedrich Hölderlin, despedindo-se dolorosamente da Pátria.

Este convite do João Rodrigues foi, portanto, um enorme desafio, um receio sincero de não conseguir alcançar aquilo que o João-realizador me propôs. Para mim não foi apenas um trabalho. Foi um autêntico renascimento após uma caminhada no deserto. Depois de Adeus Lisboa, nunca mais fui o mesmo actor, amigo, pai, cidadão. Sinto, sem falsa modéstia, que consegui conhecer o mundo interior do João sem trair “o espírito da obra”.

JP: Mesmo sendo sobre um tema difícil e bem dramático, o vosso filme nunca cai em dramatismos fáceis nem exageros nem nos histrionismos de que fala o José, procurando também mostrar em vez de dizer (penso na cena em que o filho está no sofá na posição preocupada em que adormeceu e o pai o cobre com o lençol ou mesmo o primeiro plano com as fichas médicas e os raios-x), fazer representar certos senti- mentos por gestos simbólicos em vez de os descrever em palavras. É uma lição dos clássicos, além de um sinal de respeito para com as personagens e aquilo por que passam. Acreditas em expressar o máximo com o menos possível, João? 

JR: De facto, gestos interessam-me mais que palavras, se se proporcionar essa escolha em algum momento. Mas não penso que o facto de ter mais ou menos palavras é algo que se possa escolher de forma absolutamente livre. Se considerasse que o significado dos gestos fosse melhor traduzível em palavras, assim o faria. Mas eu não sei bem qual é o significado dum pai partilhar uma laranja com o filho no parque, sem sequer ele pedir. Só sei que acho bonito. E acho que é mais memorável fazê-lo assim nesse momento, assim como dizia o realizador Anthony Mann, se calhar não nos lembramos exactamente do que um actor disse em determinado filme, mas sabemos exactamente o que ele fez. E há momentos em que é preciso falar também. Portanto não penso que seja uma questão de tentar expressar o máximo com o menos possível, apenas de mostrar o que quero da forma que melhor consigo naquele momento.

JP: Como nesse longo monólogo do Zé, sobre o desencontro no aeroporto e as caminhadas por Lisboa, com a luz a mudar constantemente. Claro, claro. E desculpem insistir, que se calhar não vale a pena estar à procura de significados nisto, mas é memorável esse gesto do Zé, o de deixar a casca de laranja perfeitamente enrolada na terra. Lembra-me a despedida da rapariga do A Nossa Casa quando fala do ramo que a família plantou, como se quisessem deixar um pedaço de si antes da despedida. Qualquer coisa que durasse bastante depois de deixarem este mundo, não sei. Pergunto- vos aos dois se será isto (tu primeiro, João). E já que o Zé falou de John Ford, perguntava se ele é fonte de inspiração e se pensaram nele quando filmavam este Adeus Lisboa.

JR: Sim, foi a ideia desse plano, que por acaso foi pensado no momento, a seguir a termos feito o plano do monólogo – ele deixaria algo de si, em Lisboa, no filho. No outro filme, A Nossa Casa, é ao contrário, eles levam consigo o ramo que tinham plantado há muitos anos atrás. É óbvio que há significados em tudo, to- dos os planos, ou elementos dos planos, foram pensados com um propósito qualquer em mente, só que às vezes é uma coisa intuitiva e não consigo explicá-la de modo analítico, é como se fosse limitar alguma coisa. Depende do plano e do momento, por vezes é uma coisa literal e simbólica ao mesmo tempo…

Quanto a John Ford, gosto imenso, mas não pensei em nenhum cineasta ou realizador enquanto estava a fazer o meu filme.

JL: Enquanto actor que sou – ser actor, mais do que uma profissão, é uma condição -, não desdenhando, bem pelo contrário, a minha memória afectiva. Como tão bem nos ensinou e ensina o Mestre Stanislavski e um dos seus discípulos mais célebres, Lee Strasberg do “Actors Studio” nova-iorquino, no trabalho criativo dos actores e de construção e apropriação das personagens esta “ferramenta”, a memória afectiva, revela-se não só importante mas também fundamental. É graças a ela que podemos “encarnar” duma forma orgânica a personagem que a cada passo nos propõem os realizadores ou encenadores. Assim sendo, e tentando responder à pergunta pertinente de João Palhares, seguramente a memória dos filmes de John Ford está presente no meu imaginário desde os tempos mais recuados da infância. E, se bem que cada trabalho artístico vale por si, bastando-se a si mesmo, não custa perceber que o tal gesto de “deixar a casca da laranja perfeitamente enrolada na terra” (no chão da Pátria) se liga com as minhas referências de obras maiores de Ford tais como The Grapes of Wrath, Young Mr. Lin- coln ou How Green Was My Valley. Recordo comovidamente, por exemplo, a sequência da morte do avô (em Vinhas da Ira) que, teimosamente, quer ficar e morrer na sua terra natal do Oklahoma; e, claro, o belo e comovente epitáfio proferido por John Carradine (interpretando o personagem do “Cal”). Ou, noutro contexto, as magistrais sequências de Young Mr. Lincoln em que vemos o “jovem Abraham Lincoln” caminhando e meditando em consonância com a terra americana. Ou, ainda, nesse imenso, eterno filme, How Green Was My Valley, que nos dá a ver a vida de uma família mineira com o seu pai à cabeça (interpretado pelo indispensável Donald Crisp) ─ é a terra escalavrada pelos “operários do subsolo” que nas entranhas da Mãe Terra, deixam o melhor de si, o seu sangue e, quantas vezes, a sua própria vida!

Por isso, ainda que o José Lopes actor, enquanto filmou com o João Rodrigues realizador essa cena da casca da laranja depositada no chão do Parque Silva Porto, não pensasse nas influências cinéfilas e telúricas atrás referidas, tudo se combinou natural e harmoniosamente para deixar um sinal, um legado, uma marca até da nossa passagem transitória pelo Mundo que é a vida. Como resume a lapidar expressão: “dust to dust, ashes to ashes”.

JP: Bom, eu deixava as coisas por aqui, com as belas palavras do Zé, só que falta uma pergunta, que tenho de fazer: João, porque é que escolheste o Il Tempo si è Fermato do Ermanno Olmi para acompanhar o Adeus Lisboa, na sessão? E se quiserem dizer ou acrescentar mais alguma coisa, estejam à vontade.

JR: Tive a honra e o privilégio de escolher esse filme porque é sobre amizade, bondade, humildade… Pode parecer ingénuo nos nossos dias, no cinismo actual, mas para mim é isto que interessa. É uma história muito simples. Passa-se num sítio longe do “mundo”, não há grandes momentos dramáticos, não há conflitos insanáveis. Dois amigos só, de gerações diferentes mas com um laço humano que não é quebrado pelas diferentes vivências de cada um. Há algo maior que os une neste filme. Eu sei o que é. Para quem quiser ver, está lá no filme, espero que o vejam também. Para acabar, resta-me agradecer aos amigos do Fundão a oportunidade deste encontro e agradecer ao José Lopes, sem o qual este filme não seria nada. Obriga- do Zé e um abraço a todos os amigos do cinema.

JL: Da minha parte queria também agradecer aos meus amigos João Palhares e João Rodrigues a oportunidade de estar convosco nesta entrevista e de partilharmos ideias e memórias acerca do Adeus Lisboa. Espero que as respostas tenham ido ao encontro das perguntas que foram surgindo ao longo da conversa. Para terminar, desejo que as sessões do Lucky Star continuem a correr bem, pois de facto é uma actividade que se torna cada vez mais importante, não apenas em termos de divulgação e revisitação de clássicos do cinema, como uma forma também de procurar levar esta arte a outros locais, tornando-a mais acessível a todos. Esperando que nos encontremos no Fundão, agradeço mais uma vez ao João Rodrigues esta oportunidade, pois na verdade, foi graças a ele e ao filme, que consegui ir ao encontro de mim mesmo, tornando-me ainda mais atento e sensível ao que me rodeia. De facto, este filme salvou-me.

Obrigado amigo João e até sempre.