MANUELA SERRA
1948 | Lisboa | Portugal

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Biografia:
Estudou cinema no Institut des Arts et Diffusion (IAD), em Bruxelas, Bélgica, de 1971 a 1974. Trabalhou como assistente de montagem (material de arquivo, acontecimentos de 1974/75), no filme Deus, Pátria, Autoridade. Membro fundador da Cooperativa Virver, onde permaneceu até 1981. Nesse período fez produção e assistência de realização em diversas médias metragens e no Bom Povo Português, de Rui Simões. Entre 1979/85, escreveu o argumento, produziu e realizou a sua primeira obra, O Movimento das Coisas.
Em 1990 inicia a escrita de argumento para um segundo filme, Ondulações, que não viria a ter a possibilidade de concretizar.

Filmografia:
1985 O Movimento das Coisas

 

CONVERSA COM MANUELA SERRA por Manuel Mozos (Jornal dos Encontros Cinematográficos 2011)

Porquê e como o cinema?

Vi no cinema uma forma de poder expressar-me e simultaneamente um meio de sobrevivência. Poderia trabalhar em qualquer área da produção, montagem, argumento-guião, como aliás aconteceu durante o período de vida da cooperativa Virver.

Com o 25 de abril de 1974, regressas a portugal, abandonando o curso de cinema, no institut des arts et Difusion, em bruxelas e, a convite do rui simões, trabalhas como assistente e na montagem do seu filme “Deus, pátria, autoridade” e, em 1975, és uma das fundadoras da Cooperativa de Cinema “Vir- ver”. Fala-nos dessas experiências, do teu trabalho já como profissional e do ambiente da época.

O meu trabalho como assistente de montagem no “Deus, Pátria, Autoridade” do Rui Simões, consistia em sincronizar, classificar, organizar dezenas e dezenas de imagens, que me entregavam semanalmente, captadas por diferentes equipas, diferentes operadores de imagem e som. Manifestações, comícios, lutas entre patrões e trabalhadores, ocupações de casas e terras, acções militares, discussões de rua, enfim os acontecimentos mais importantes de todo aquele período que se seguiu ao 25 de Abril. Também imagens de arquivo da RTP. Aprendi a conhecer as diferenças de sensibilidade dos operadores de imagens através dos movi- mentos de câmara, tempos, enquadramentos. Cinco anos depois, quando realizei “O Movimento das Coisas” foi-me fácil escolher a equipe certa, sobretudo em imagem.

O ambiente e espírito com que se iniciou a cooperativa VIRVER, era semelhante ao que se vivia à época em Portugal, Lisboa, grande entusiasmo e esperança. Acreditávamos que poderíamos fazer um trabalho de melhor qualidade se partilhásse- mos conhecimento, experiências, afectos, bens materiais. Procurávamos que existisse rotatividade no trabalho sem formalismo e hierarquias. Durante 4 ou 5 anos produzimos várias séries para TV, Educação Permanente e longas-metragens. O facto de ter trabalhado em todas as fases de produção e em diferentes funções deram-me confiança para realizar.

Como surge “o Movimento das Coisas”? Que filme pretendias fazer? Como te vias, então, como realizadora?

A primeira ideia do filme era “Mulheres”, na época falava-se e escrevia-se muito sobre o tema, li bas- tante e contactei com diversas mulheres, algumas ligadas a movimentos de libertação feminina. Fiz uma viagem a Nova Iorque dentro desse espírito. Quando regressei a Lisboa mudei. O tema pareceu- me uma pequena parcela do todo.

Tive a percepção que a evolução que se pretendia para o nosso País carecia de paragem, de reflexão, como que olhar o passado antes de avançar, tentar preservar valores, qualidade de vida…

Pensei contrapor cidade-campo, a sensatez fez-me ficar pelo campo, orçamento muito curto, primeiro filme a realizar…

Como e porque optaste por situar o filme em lanheses? explica-nos a contaminação do documentário com a ficção e vice-versa.

Lanheses foi a minha aldeia eleita. Depois de Alentejo, Beira e Minho, verifiquei que no norte as pessoas eram mais abertas, respeitavam-me quando entrava sozinha num café ou restaurante, ao falar da ideia do filme manifestavam receptividade e interesse. O Minho é mais alegre que a Beira e no Alentejo olhavam-me com desconfiança.

Encontrei em Lanheses uma harmonia entre o rio, o largo, a igreja, o entrecruzamento da população, uma arquitectura ainda preservada, e também uma simpática pensão com abertura para aceitar uma equipa de filmagem um pouco excêntrica.

Ficção, documentário, acho que fiz um bom casamento. Dando exemplos talvez seja mais fácil. Quando fiz a Isabel olhar para traz ao descer da camioneta (no largo) no regresso da fábrica, foi fic- ção pura, não foi pedir-lhe que representasse o seu próprio papel, foi para servir a minha ideia, olhar para trás, que sublinhei com o paralítico. Também a velhota que sentada à mesa bebe uma malga de vinho e olha a câmara é ficção.

Quando se colocou a câmara fixa em tripé no largo e se esperou que acontecesse, uma mulher de trocha à cabeça, uma carroça que vem do campo e atravessa o largo, grupos de homens à conversa aqui é documentário, não houve planificação, só montagem.

Como decorreu a rodagem? Qual era o ambiente, a relação com a equipa, com os intérpretes do filme, os habitantes de lanheses?

O resultado foi positivo, dada a minha inexperiência na direcção e os reduzidos meios de produção. A cooperação da população foi total, com mais tempo de filmagem poderia ter feito um trabalho mais pro- fundo, sobretudo na relação entre as personagens.

Entre o início da primeira rodagem, em 1979, e a sua primeira exibição pública, em 1985, no Festival de Mannheim, passaram seis anos. Como foi esse percurso?

A cooperativa acabou antes de eu terminar o filme. Faltava música, sonoplastia, mistura e laboratórios. Ao ficar sozinha, sem estrutura de produção deprimi, parei e recuperei.

Grande surpresa ao retomar o contacto com o en- tão IPC para receber a última prestação do subsídio e terminar o filme, exigiram-me que justificasse a quantia de 2.500 contos (1983) que tinham sido atribuídos à Cooperativa VIRVER e gastos na produção do Movimento das Coisas. Falso. Levou tempo e trabalho para provar a falsidade do facto. Só depois então me entregaram a última prestação e terminei em 1984.

O filme esteve em inúmeras mostras e festivais, tendo obtido diversos prémios e, segundo o ipC, em 1989, seria o filme português com maior participação nesses eventos; teve algumas vendas para canais televisivos estrangeiros, como franceses ou suíços. apesar disso, o filme nunca teve estreia comercial; apenas exibições esporádicas ao longo do tempo: na Cinemateca, na gulbenkian, no Fórum picoas, no Fórum lisboa, no panorama, etc., bem como em londres ou turim. parece haver alguma ironia. Como vês isso? tem a ver com uma época? Hoje poderia ter sido diferente?

A primeira exibição pública foi em Mannheim, Outubro de 85. A qualidade da projecção deu-me uma dimensão do filme que ainda não conhecia. A plateia aplaudiu em peso e ganhei um prémio. Depois, em Tróia atribuíram-me o prémio AGFA e algumas apreciações do género “um documentário com imagens muito bonitas”. Ao longo da projecção a sala foi-se esvaziando e potenciais exibidores saíram de nariz torcido.

De facto na época o cinema documental era desvalorizado, apostava-se para o cinema “tipo” americano. Não era de todo o que eu queria e sabia fazer, percebo que produtores não se interessassem pelo meu trabalho.

Hoje já não sei, afastei-me, tive que esquecer e perder o gosto pelo cinema. Progressivamente fui deixando de construir sequências, procurar enquadramentos, imaginar situações…

Que percepção tens da relação do filme com os espectadores, desde Mannheim, até agora?

Em geral senti sempre adesão do público e li muitas críticas positivas, claro não assisti a todas as projecções. Em Itália (Florença), por exemplo, diverti-me porque o público estava dividido, manifestou-se ruidosamente nos dois sentidos, metade apupava a outra aplaudia, zangando-se uns com os outros. Soube que em França (Cinéma du Réel) não foi apreciado.

Como vês o filme hoje?

Continuo a gostar, sem fazer uma análise objectiva. De diferente, só não retiraria o último plano (como o fiz, ainda ficou o som) que era o largo de uma fábrica no meio do campo, ao longe chaminés deitavam fumo, o único movimento era o fumo, muito longo em tons azul acinzentado. Cedi à crítica que dizia ser muito pessimista. Hoje acho que eu tinha razão.

Ainda tiveste um outro projecto: “ondulações”, ou “ondas”, ou “o Movimento das ondas”. Que filme seria? porque não chegou a realizar-se?

Seria Lisboa e as suas praias. Não concretizei por- que o governo mudou. A Zita Seabra subiu ao IPC e rejeitou o projecto que apresentei 3 vezes. A Gulbenkian tinha-me atribuído um pequeno subsídio de escrita, que só recebi metade. Perdi a paciência.

Desde 1991 / 1992, abandonaste completamente o cinema. porquê? nunca pensaste ou sentiste vontade de voltar?

Não, não senti vontade de voltar e até perdi o gosto pelo cinema.

Como vês hoje o cinema? e o que se faz em Portugal?

Não posso responder, não vejo cinema, só levada como foi o caso do “Freedom”, por me conhecerem e saberem que iria gostar.

No final do “bom povo português”, de rui simões, apareces numa sequência ficcionada como actriz, contracenando com actores como augusto Figueiredo e Cecília guimarães, ou Helder Costa. Não sei se tiveste alguma outra experiência idêntica. Mas como te sentiste aí como actriz? não tiveste vontade de voltar a ser?

Que me lembre não, não me sinto à-vontade quando sou o alvo de atenções em público. Foi por espírito cooperativo que me prestei a fazer de actriz, também por as crianças serem meus sobrinhos.